No princípio era a viagem

“Nomadeia” do escritor, cientista social e viajante Wagner Uarpêik não é apenas um livro de viagem. Mais que descrever paisagens, nos faz sentir a fundo a sensação de se largar no mundo sem destino, à moda dos santos peregrinos como Francisco de Assis e os célebres dervixes, que se submetiam à poeira da estrada e dependiam da bondade dos outros para comer e dormir. Uarpêik não é santo, mas percorreu a pé, de ônibus, bicicleta ou carona cerca de 70 cidades na América do Sul e Caribe. Leiam a entrevista com o autor.

Quando vendeu seu automóvel e planejou sua viagem já sabia que escreveria um livro sobre a experiência? Ou a iniciativa surgiu depois?

R: Sabia que escreveria durante a viagem. Escrever viajantemente, nomadamente, já me atraía. Mas não planejava escrever um livro sobre a jornada latina. Esse plano se consolidou perto do fim da perambulagem.

O livro contém trechos de seu diário de viagem. Como era esse diário? Um caderno? Anotações no celular? Em que momentos e circunstâncias você parava para escrever?

R: Antes de viajar não costumava usar celular. Foi natural não levar celular na viagem. Queria escrever ao velho modo, ou seja: escrever mesmo – não teclar. Tive cadernos de anotações. Serviam pra registrar curiosidades, informações, e também escritos, digamos, mais literários: cartas manuscritas que eu depois digitava e enviava eletronicamente pr@s querid@s; e também poemas, notas, ensaios… Eu não me obrigava a escrever: era obrigado, por necessidade ou inspiração. Selecionei alguns trechos desses cadernos pro livro.

O terço final do livro traz muitas descrições dos costumes de povos ameríndios que encontrou pelo caminho. Dentre as experiências com essas pessoas, qual foi a mais marcante e por quê?

R: No sul do Brasil, visitei uma aldeia Guarani. Depois, no Chile, Peru, Equador, Colômbia e Bolívia, encontrei indígenas Mapuche, Aimara, Kogui, Misak, e outros povos andinos. Estive mais tempo com os Kantuash-Shuar, da montanhosa Amazônia Equatoriana. Lá aprendi principalmente sobre coragem e rebeldia, pois convivi com guerreiros indomáveis que têm resistido a madeireiros, petroleiros e impérios durante séculos!

Alguns capítulos do livro são escritos em forma de poesia ou prosa poética. Por que essa escolha?

R: Por um lado, minha inclinação à poesia é, talvez, uma tendência mais espontânea que deliberada. Por outro, escrevi alguns trechos e até um capítulo inteiro do livro em forma de versos, porque achei que me ajudariam – mais do que os parágrafos – a expressar, sintetizar e combinar memórias; e também porque quis fazer de “Nomadeia” uma jornada errante pelas fronteiras dos gêneros, estilos e linguagens [demarcações tão verdadeiras e saudáveis quanto as fronteiras entre os países].

Ao voltar da viagem, foi difícil engrenar a vida comum com rotina, contas a pagar etc? Como foi a adaptação?

R: A “longa” estadia em Medelim, em 2010, me preparou bem para retomar a vida “sedentária” em Natal, em 2011, já que na Colômbia vivia uma paixão com contas a pagar e rotinas a cumprir. Quando voltei, meu maior problema não foi, portanto, a adaptação à vida “ancorada” (como gosto de dizer). O grande problema foi decidir qual caminho profissional tomaria. Ao final de um período de testes e dúvidas, acabei decidindo trabalhar com tradução. Um serviço que comecei a prestar durante a viagem, traduzindo artigos acadêmicos do espanhol para o português.

Uma viagem tão longa e com tantas aventuras deve mudar radicalmente a maneira de ver o mundo. Qual foi o legado para você? O que trouxe na sua bagagem como ser humano?

R: Voltei com a certeza de que viajar é muito mais um estado de espírito do que um deslocamento de corpos. Quantas viagens cotidianas desperdiçamos, aqui e agora, enquanto sonhamos e programamos nossas futuras viagens de férias! Os viajantes mais lúcidos e audaciosos que conheço são profundamente caseiros. Os cenários, cenas e personagens de qualquer viagem são iscas para viajarmos por dentro.

Tem planos de realizar outra viagem como essa? Caso sim, qual será o roteiro e a época?

R: “Uma vez nômade, sempre nômade” é um dito que criei para nossa ainda tão paleolítica e curiosa espécie. Tenho simpatizado com três projetos: uma tremenda caminhada a pé pela costa nordestina, no final do ano; uma viagem bem menos primitiva e quente pela Europa, em 2024 ou 2025; e uma turnê de divulgação e lançamento de “Nomadeia” Brasil afora, pra logo mais. Talvez “Nomadeia” vire uma série.

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