Machado revive – e fala

Ainda fresco no caixão, Machado de Assis começa a escrever sua história de vida, partindo do enterro que acaba de se concluir até o próprio nascimento. Seguindo o formato do clássico “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, Milton Coutinho dá voz a um Bruxo ficcional, que compartilha com os leitores medos, crueldades e segredos como a vivência do racismo brasileiro do século XIX na própria pele; períodos de sua vida dos quais sabe-se pouco ou quase nada, como a infância e a primeira juventude; seu papel na transição do Romantismo para o Realismo na literatura brasileira; a paixão pela mulher retratada no quadro A Dama do Livro; o “pacto diabólico” do casamento com Carolina. Capítulos curtos e a escrita elegante de Milton Coutinho, autor de “No domínio de Suã” (romance, 7Letras, 2020), tornam este livro uma leitura envolvente e divertida, pois o humor também se faz presente desde o início. Leiam a entrevista com o escritor.

Muitos livros já foram escritos sobre Machado e até biografias, além dele ser alvo de monografias, dissertações e teses de doutorado em todo o mundo. Qual é o diferencial do seu livro e por que escrever sobre Machado?

R: A grande maioria dos livros sobre Machado parece apresentar um personagem idealizado, omitindo ou relativizando suas fraquezas, defeitos e inseguranças. Busquei, nas entrelinhas da vida e da obra do Machado, encontrar o homem e o escritor verossímeis, sem esquecer de acrescentar-lhe uma boa dose de ficção. Daí vieram as premissas do romance. Quanto ao porquê de escrever sobre Machado, diria simplesmente que é figura ineludível para qualquer escritor brasileiro.

Assumir a voz de Machado de Assis e narrar em primeira pessoa é um desafio e uma audácia. Como desenvolveu esse narrador?

R: Parti inicialmente da voz desencantada, irônica e até mesmo cruel do Machado da fase realista. Apliquei, então, esse olhar aos momentos-chave de sua biografia. Em seguida, introduzi nessa biografia elementos ficcionais retirados da própria obra do Machado. Por fim, dei-lhe algumas de minhas próprias características como narrador e algumas de minhas obsessões. O resultado final é o produto dessa mistura.

A pesquisa para este livro deve ter sido monumental. Pode nos contar como foi?

R: Sim, de todos os meus livros, este é de longe o que mais pesquisa requereu. Reli toda a obra em prosa e poética do Machado, e li boa parte de suas peças, de suas crônicas e de sua correspondência. Consultei várias biografias e ensaios críticos. De qualquer modo, o importante a dizer sobre todo esse trabalho de pesquisa é que procurei fazê-lo com um olhar “ficcional”, ou seja, sem perder de vista que todos os dados obtidos pertenciam de alguma forma ao terreno da ficção e – sobretudo – se destinavam a uma obra de ficção.

Alguns episódios – ou até mesmo intrigas – são sugeridas ao longo do texto. Como um suposto triângulo amoroso com José de Alencar e sua mulher, que teria inspirado “Dom Casmurro”. Essas suposições são conclusões pessoais ou chegou mesmo a encontrar evidências?

R: A suspeita de que Machado de Assis e Georgiana Cochrane de Alencar (esposa de José de Alencar) tenham sido amantes e que Mário de Alencar fosse filho de Machado existe desde os anos 50, desde que foi aberto o “Diário Secreto” do cronista Humberto de Campos (1886-1934). De tempos em tempos, ela reaparece. Como em todos os aspectos da biografia do Machado, o que me interessou nessa hipótese foi o seu potencial ficcional e o diálogo com outras obras suas, sobretudo “Memórias Póstumas” e “Dom Casmurro”.

“Autobiografia póstuma de Machado de Assis” é o segundo volume de uma Trilogia Brasileira idealizada por você, sendo o primeiro, o romance “No domínio de Suã”. Os livros não dialogam, pelo menos, à primeira vista. O que é essa trilogia e como a concebeu?

R: O fio que une os romances desta minha trilogia é a abordagem literária de certas épocas da história do Brasil, sempre tendo um escritor brasileiro como elemento inspirador. No caso do primeiro volume foi o Victor Giudice e neste segundo, como se sabe, Machado de Assis. Outro ponto em comum é que todos os três romances começam por frases iniciais de clássicos da literatura e enveredam por tramas completamente diferentes das de suas citações. Meus livros anteriores à Trilogia tinham pouca ambientação brasileira, e senti a necessidade de uma imersão na literatura e na história do Brasil.

Chegou a sonhar com o Bruxo enquanto escrevia o novo livro?

R: Não. Na verdade, o fato de praticamente não recordar os sonhos é uma das minhas tristezas. Em compensação, costumo dizer que sonho de olhos abertos com os livros que escrevo, pela razão de que, ao deitar-me para dormir, repasso os desdobramentos da trama e repenso certas soluções encontradas. Aliás, isso ocorre não apenas no momento que precede o sono. Mesmo quando não estou escrevendo, o livro “em andamento” absorve grande parte do meu pensamento.

Deixe um comentário

Este site utiliza cookies para lhe oferecer uma melhor experiência de navegação. Ao navegar neste site, você concorda com o uso de cookies.