Uma estreia que promete vida longa ao escritor

A cura de uma doença mortal corre nas veias de mulheres de 79 anos. O Estado tem direito sobre os corpos dessas mulheres e sacrifica suas vidas em prol do “bem comum”. Esse é o tema do romance “A Vida Breve dos Cães” (Ed. Mondru), de Elton Frederick. Na trama, ele entrelaça as histórias de Isaque, funcionário de pet shop responsável por entregar sua mãe adotiva ao governo; Isabel, senhora de 79 anos e diaconisa de uma igreja evangélica; e Cecília, publicitária que após um breve relacionamento com Isaque tem a vida transformada por um acidente. Os cachorros estão presentes, em especial, Mordecai, com quem Isaque desenvolve uma relação de veneração que explica as motivações e atitudes do protagonista. Leiam a entrevista com o escritor.

Através de uma narrativa dramática, beirando a distopia, o livro levanta um questionamento em voga: a liberdade do corpo feminino. Como surgiu a ideia deste romance?

R: Em meados dos anos 2000 fiquei muito impressionado com a história de Terri Schiavo, uma jovem americana que, na década de 90, sofreu uma parada cardíaca e ficou em estado vegetativo. O caso ganhou repercussão mundial porque colocou em lados opostos o marido, que buscava uma autorização legal para a eutanásia, e os pais da mulher, que acreditavam que ainda havia alguma consciência em Terri. Depois de 15 anos de um intenso debate sobre o “direito de morrer”, a Justiça autorizou que o tubo que a alimentava fosse desconectado. Terri Schiavo morreu 13 dias depois, em março de 2005. Isso me marcou e eu comecei a escrever uma história que também apresentava um dilema bioético. “A vida breve dos cães”, porém, ficou adormecido por anos em uma gaveta, sendo alimentado pontualmente por sonda, até que comecei a me interessar e a estudar questões relacionadas às violências de gênero. Percebi que o objeto do livro, por assim dizer, era menos a questão bioética e mais uma reflexão sobre as tentações de controle sobre o corpo. Muitos corpos estão sob ameaça, mas alguns estão mais ameaçados do que outros.

Sendo homem, e com a discussão sobre “lugar de fala”, como se sente falando sobre um tema que diz respeito, primeiramente, às mulheres?

R: O conceito de lugar de fala é um importante instrumento para a compreensão da realidade, mas há uma certa confusão quando é usado para interditar a participação de alguém ou de algum grupo no debate. Sou um homem e, inescapavelmente, escrevo a partir desse lugar. Isso não me impede, porém, de construir personagens femininas, como a Cecília e Isabel, ou de refletir sobre questões de gênero. Aliás, me parece fundamental que homens participem dessa conversa. No processo de escrita de “A Vida Breve dos Cães”, achei importante submeter o livro à leitura crítica de mulheres. Os apontamentos feitos por essas leitoras foram decisivos para evitar estereótipos que nós, homens, usamos com frequência. Fico verdadeiramente lisonjeado quando alguém sugere que o livro tem um viés “feminista”, apesar de achar essa classificação pretensiosa. O conteúdo do livro não pode ser apartado do processo que o fez existir. Ou seja, não posso ignorar que quando escrevo, quando dedico uma fração do meu tempo à literatura, estou me beneficiando de uma estrutura de privilégios pelo simples fato de ser homem. Não por acaso, a literatura foi, por muito tempo, uma atividade feita quase exclusivamente por homens brancos e de classe média. Felizmente outras vozes estão surgindo. Importante destacar também que embora “A Vida Breve dos Cães” proponha uma reflexão sobre as violências de gênero, não há qualquer pretensão salvífica ou moralizante. Não se trata de uma literatura feita para enunciar princípios, crenças, ou ainda para prestar contas à própria consciência. A arte e a agenda social têm compromissos diferentes que podem, eventualmente, se encontrar com resultados muito interessantes. Não sei dizer se esse é o caso do meu livro. O que espero é, minimamente, provocar deslocamentos, incômodos, a possibilidade de uma realidade não pensada.

Você é jornalista, pós-graduado em antropologia e mestre em Ciências Sociais. Esse conhecimento ajudou a escrever “A Vida Breve dos Cães”?

R: As Ciências Sociais, em especial a antropologia, me colocaram em contato com uma série de autores e autoras que foram fundamentais para minha, digamos, conversão à literatura. Olhar a realidade a partir de um processo de estranhamento, de tentar compreender o outro a partir dos seus próprios termos, ou mesmo descrever experiências individuais tendo em vista o universal estão muito presentes nessas ciências e foram importantes para a concepção de “A Vida Breve dos Cães”. Na antropologia, há diversos autores que recorrem a uma linguagem que podemos chamar de literária. Acho, inclusive, muito difícil fazer uma descrição etnográfica sem o auxílio de um olhar literário.

A história é narrada do ponto de vista de três personagens com posições e opiniões divergentes. Esse formato já era previsto ou surgiu durante o processo de escrita?

R: Foi uma necessidade que surgiu durante o processo de criação do livro. Gosto muito da ideia de tramar, de tecer uma história ao invés de simplesmente contá-la. Os pontos vão sendo ligados, alguns ficam soltos, como se a linha fosse insuficiente. Inicialmente, “A Vida Breve dos Cães” teria duas vozes narrativas, uma de Isaque e a outra que seria feita em formato de oração, de Isabel. Não funcionou. A oração pareceu artificial demais e eu desisti desse recurso. Faltava, no entanto, um elemento de indignação que precisava ser manifesto por alguém que estivesse vivendo o calor do momento e a iminência de ter o seu corpo submetido à Solução 79. É nesse contexto que surge Cecília. As três partes do livro foram escritas em tempos diferentes, o que, espero, garantiu uma identidade, uma voz própria, a cada narrador.

A fé tem um papel importante na história e influencia fortemente as atitudes de alguns personagens. O que motivou a adicionar esse elemento à trama?

R: Fui uma pessoa religiosa durante boa parte da vida e entendo o papel que a fé exerce nas motivações, escolhas e atitudes das pessoas. Além disso, acho que a literatura pode ser um meio importante para compreendermos melhor o fenômeno evangélico no Brasil. Essas pessoas são mais complexas do que nossos preconceitos sugerem e a literatura é capaz de contemplar essa complexidade pela via estética, sem juízo moral, sem binarismos, sem a ridicularização do que nos é diferente. Em “A Vida Breve dos Cães”, mais do que a fé, penso que é a devoção o elemento que norteia algumas atitudes dos personagens. Vejo Cecília, Isabel e Isaque como devotos, não necessariamente de Deus.

Os cachorros estão presentes na história. O protagonista é funcionário de um petshop, apaixonado por Mordecai, seu companheiro de quatro patas. O que o inspirou na escolha do título do livro?

R: Os cães, infelizmente, vivem pouco. Talvez esse seja o único defeito deles. No livro há uma espécie de diálogo entre a longevidade das mulheres de 79 anos e a vida curta dos cães. Mas o que está em jogo na trama é a ideia de sacrifício. Em muitas religiões, o sacrifício é um elemento apaziguador de dores, de conflitos, de animosidades. Aqui entra também a influência da antropologia no livro. Há uma série de cenas que remetem à essa ideia. Por piedade oferecemos aos cães uma morte sem dor, quando não há mais cura ou remédio possível para eles. É, presumidamente, um ato de amor. Renunciamos à melhor das companhias – ou nos livramos dela porque já não suportamos mais o peso da doença, da velhice, ou a fatura do veterinário – para cessar o sofrimento, porque entendemos que isso é o certo a se fazer. As mulheres do livro também são sacrificadas. As motivações são diferentes, mas o elemento comum é a crença de que o sacrifício é o certo a se fazer.

A originalidade do tema e a maturidade na narrativa marcam sua estreia na literatura. Quais são suas influências literárias? E quais são seus planos como escritor?

R: Tenho dificuldade para falar sobre influências, mas alguns livros me marcaram, como é o caso de “A Vida Breve”, do Juan Carlos Onetti. Vejo um pouco do protagonista, Juan Brausen, em Isaque, assim como o alheamento do personagem que criei me faz lembrar Meursault, de “O Estrangeiro”. Mordecai, certamente, está na árvore genealógica da Baleia, de “Vidas Secas”, e de Karenin, de “A Insustentável Leveza do Ser”. Atualmente, tenho me interessado bastante pela literatura feita por duas escritoras argentinas, a Ariana Harwicz e a Mariana Enríquez. Já estou escrevendo meu próximo livro que, novamente, terá um viés especulativo e o corpo como temática principal. Uma das poucas vantagens de morar longe do trabalho – vivo em uma região periférica de São Paulo – é poder escrever praticamente todos os dias, no metrô ou no trem. Boa parte de “A Vida Breve dos Cães” foi concebida dentro de um vagão.

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