Mal-estar no século vinte e um

“Há algo de podre no reino da Dinamarca”, diz Marcelo em “Hamlet” de William Shakespeare. Há também um “Mal-estar na civilização” segundo o criador da psicanálise, Sigmund Freud. O livro de estreia do médico e escritor Luiz Vianna Sobrinho, “Nove para o singular”, dialoga com essas obras ao apresentar uma ou várias histórias em que algo profundamente errado permeia e impacta a vida de seus personagens. Leiam a entrevista com o escritor, que é médico cardiologista, professor e doutor em Bioética pela Fiocruz.

Seu livro tem como ponto de partida uma epidemia que mata répteis, sem explicação, ao redor do mundo. De onde surgiu essa ideia?

R: Pode parecer que eu tenha buscado alguma referência ao que vivemos, mas eu escrevi essa primeira história antes de qualquer sinal da pandemia. O sentimento que tentei transpor foi como uma metáfora para essa onda de mal-estar que nos atinge nas últimas décadas e não temos uma resposta muito clara, concreta, unívoca para explicá-la. Sinto, dessa forma, a onda crescente do fascismo que se espalha no mundo, justamente na chamada Era da Informação. É difícil dar uma explicação, assim como a morte dos jacarés. Ficamos com o mal-estar.

A orelha do livro, assinada pelo colega Fernando Passos Telles, doutor em Filosofia pela UFRJ, cita Gilles Deleuze, Lewis Carroll e Kierkegaard. Qual é o papel da filosofia na sua literatura? Esses três autores são influências?

R: Além de grande amigo e professor de filosofia, Fernando citou autores que pouco discutimos, mas que ecoaram no texto para ele. Quanto ao papel da filosofia, talvez me imponha uma necessidade de trabalhar conceitualmente aquilo que imagino, antes de passar para a escrita. Mas não sei se deixo esse rigor impedir a liberdade de criar. E não separo muito essas bordas; há muita filosofia na literatura, e literatura de alto nível em clássicos da filosofia, como nos diálogos platônicos, no Zaratustra de Nietzsche, nos franceses recentes, etc.

Você é médico e ainda trabalha bastante, além de lecionar. Como arranja tempo para ler e escrever?

R: Sou dependente físico da leitura. Lembro de um texto do Verissimo, em que dizia ir ao banheiro do hotel, para ler ‘quente’ e ‘frio’ nas torneiras quando não tinha mais nada para ler. Assim, leio tudo e muito, tanto por necessidade profissional, quanto pessoal. E a escrita vem no mesmo ritmo nos últimos quinze anos. Grande parte da minha tese e dos meus livros escrevi de madrugada, nos plantões ou acordando mais cedo em casa.

O que é a Bioética em poucas palavras?

R: É uma ampliação recente do campo da Ética, com finalidade normativa e prescritiva sobre aquilo que fazemos que tenha relação com a vida e o ambiente; uma ética prática. Foi preciso acordar a Ética da sua discussão estéril, acadêmica, apenas teórica, no intuito de pensar na proteção da ação humana e de suas tecnologias, sobre a vida em geral e o meio ambiente. Referindo-se a esta explosão tecnológica e à necessidade de saber conduzi-la, o filósofo Stephen Toulmin disse que “a medicina salvou a Ética”; era o batismo da bioética.

Os contos de seu livro se interligam e o conjunto pode ser lido como romance? Uma narrativa longa está em seus planos?

R: Costumo pensar que não escrevi contos, mas histórias que estão registradas no mesmo espaço temporal e dentro do mesmo acontecimento. Chego a orientar aos mais próximos que evitem ler os contos avulsos ou fora da ordem. A contagem regressiva dos capítulos tenta reforçar essa ideia. Há uma história inicial que ‘dispara’ uma questão. No meio do livro, outra história que é como a coluna espinhal. E o último tem de ser a conclusão.

Por que jacarés?

R: Fico feliz que essa pergunta permaneça na cabeça de quem já leu o livro. Um dos meus amigos me disse, depois de ler, que “todos temos os nossos jacarés”. É importante buscar nas histórias o que simboliza a morte dos jacarés. É importante encontrar na leitura até onde vai nossa possibilidade de saber. Eu devolvo a pergunta: qual é o seu jacaré?

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