Para os fodidos da cabeça e bons demais do coração

Sobre o fundo negro, um coração humano extirpado do peito. Mas ele não está só. Um segundo olhar mais atento é capaz de perceber dois corações superpostos em suaves tons de azul e rosa. A capa do livro de poesias “Sinto muito” (Kotter Editorial), de Roberto Passeri, diz bastante sobre seu conteúdo. É o coração do autor em estado bruto, exposto, que recebe os impactos do cotidiano, da memória, e os transpõe em palavras, forjando bela e potente poesia. Não por acaso, o livro é dedicado “A todos aqueles fodidos da cabeça e bons demais do coração”.

Seu livro anterior, “Infinitos lutos”, sobre a tragédia da queda do avião com o time Chapecoense, foi um livro-reportagem merecedor do Prêmio Book Brasil. Como foi a transição para escrever um livro de poesias?

R: Não foi tão brusca quanto pode parecer à primeira vista. Sempre transitei por formatos e linguagens diferentes. Em “Infinitos Lutos”, por exemplo, há dois poemas na parte final do livro e eles estão ali à serviço de um propósito jornalístico. Não vejo tanta distância entre as duas coisas. Claro que nem todo jornalista é poeta, mas todo poeta é, sim, uma espécie de repórter: atento a tudo, entrevistador das emoções. E “Sinto muito” não deixa de ser isso.

“O lugar do nascimento do poeta é a crise”, diz no prefácio o filósofo Paulo Victor Rodrigues da Costa. “Sinto muito” nasceu de uma crise?

R: Sim. Seguindo a linha da resposta anterior, “Sinto muito” é uma ‘reportagem poética’ sobre crise, relacionamentos, saúde mental do indivíduo – e a do coletivo, posta em xeque com a pandemia.

Seu livro é dedicado “A todos aqueles fodidos da cabeça e bons demais do coração”. O que quer dizer com isso?

R: Em outras palavras, dedico o livro a todas às pessoas boas que sofrem demais por serem sensíveis, que geralmente se quebram tentando consertar o mundo.

Você é roteirista, co-autor das séries “Casão” e “Jessie & Colombo”, exibidas no canal de streaming Globoplay. A escrita de roteiros é bem específica e diferente da literatura. Existe algum conflito entre essas duas linguagens dentro de você?

R: Hoje em dia, nenhum. Já houve um momento de achar que só poderia ser uma coisa ou outra, mas é possível conciliar as duas. Me enriquece. Acabo bebendo de fontes diferentes, vendo outras referências, mesclando narrativas. E também, sejamos sinceros, por necessidade né (risos) não conheço muita gente que vive exclusivamente de literatura no Brasil.

Você é nômade digital, viaja e trabalha. Conte pra gente como é viver assim: não sente falta de criar raízes, de voltar para um mesmo lugar? Como organiza seu tempo entre o trabalho como roteirista e a escrita literária, enquanto viaja?

R: O povo romantiza bastante essa história de “nômade digital”, né? Sinto falta de muita coisa, mas faz parte da escolha que fiz. Tento acolher essa escolha para sofrer o mínimo possível, pensar que nada precisa ser definitivo. Sou curioso, inquieto. A verdade é que não posso estar muito tempo no mesmo lugar, porque me acomodo e perco aquele radar atento, essencial ao meu trabalho. Se a realidade parar de me impressionar, estou fodido.

Você também escreve contos e alguns deles contos foram selecionados e publicados nas coletâneas da editora Off Flip em 2021 e 2022. Tem planos de publicar um livro de ficção, conto ou romance?

R: Eu adoro aquela frase, acho que é do Mandrake, personagem do Rubem Fonseca: “A verdade é mais estranha que a ficção porque não é obrigada a obedecer ao possível”. Não é? (risos). Como roteirista, estou viciado em documentários. E como escritor, não sinto desejo e nem capacidade para escrever, por exemplo, um romance agora. Acho que este momento vai chegar, mas não é agora.

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