Arquivo cheio de vida

Decio Zylbersztajn provou, com seus livros anteriores, que domina as artes do conto – “Como são cativantes os jardins de Berlim” e “Acerba dor” – e do romance – “O filho de osum”. Em “O arquivo dos mortos – Histórias de um obituarista” (romance, Ed. Reformatório, 2022), ele oferece aos leitores uma narrativa que combina os dois gêneros literários: dentro da trama principal se encaixam nove obituários, que funcionam como contos independentes. Leiam a entrevista com o autor.

Você é, ou era, leitor de obituários em jornais? Qual é o prazer na leitura desses textos?

R: Costumo ler os obituários do The Economist. São bem escritos e nada burocráticos. Assisti a uma entrevista da jornalista responsável, que de certo modo ela me inspirou. Lá eu encontrei o obituário de Tama Chan, que gerou um dos capítulos do livro. Quanto aos demais obituários eu apenas confiro para ver se o meu nome consta. Em caso positivo nem preciso me preocupar com os compromissos que assumi naquele dia (rsrsrs).

Você é um dos fundadores de um clube de leitura na cidade de Gonçalves, Minas Gerais, onde passa parte do ano. O local das reuniões era um sobrado perto do cemitério. Veio daí a ideia de escrever esse livro?

R: As reuniões presenciais do Clube dos Leitores Destemidos ocorrem na biblioteca localizada no andar superior do velório, ao lado do cemitério. Na verdade, o tema da morte é fascinante. Um compromisso que todos temos, é inevitável, apenas não sabemos quando será. Talvez seja o tema de fundo das nossas vidas. É o motor dos escritores que desejam serem lembrados só mais um pouquinho por meio dos leitores dos seus livros. Um desejo vão, pois o esquecimento é inevitável. A morte é o esquecimento.

O brasileiro é um sujeito mega-supersticioso. Em algum momento teve receio de escrever um romance sobre a morte? No sentido de que poderia “assustar” os leitores?

R: Estávamos atravessando a pandemia, cercados por estatísticas sombrias, perdendo entes queridos e vendo os desmandos do presidente irresponsável. Concluo que os vivos me assustam mais do que os mortos. Por outro lado eu insisto em afirmar que o Arquivo dos Mortos é um livro sobre a vida.

Os obituários descritos no livro são histórias à parte. Algumas são reais, como a idosa que foi encontrada mumificada em sua casa, em Madri, uma década após morrer. O lado B da vida dessas pessoas, conforme narrado na trama, é inventado? Ou chegou a pesquisar?

R: O lado B, ou talvez seja o lado A, é pura ficção. As narrativas a respeitos dos mortos, sejam as biografias póstumas, obituários ou mesmo as memórias que são compartilhadas, não consideram as opiniões dos falecidos. O que eu tentei no livro foi dar voz aos mortos. Um exercício de possibilidades críticas que nunca saberemos ao certo quais seriam.

Os mortos falam, em seu livro – e em primeira pessoa. De onde surgiu a ideia de dar voz a eles?

R: Um pouco do que mencionei na pergunta anterior. Cabe lembrar que dar voz aos mortos não é novidade literária. Machado de Assis, Érico Veríssimo e outros já o fizeram. Por certo que tal situação nos faz pensar a respeito do absurdo que é a vida, de quanto julgamos os mortos que não podem reagir aos julgamentos que os sobreviventes fazem. Um autor, Nobel de literatura Elias Canetti, afirmou que o funeral é a festa dos sobreviventes.

Lena é uma personagem tão contemporânea. Em quem se inspirou para cria-la?

R: Lena é uma criadora de fake news. Ela tem o dom de criar personagens interessantes a partir dos perfis medíocres. Creio que tem muita gente que faz este exercício, por exemplo os marketeiros dos políticos. Mas lena é também uma assombrada com o papel subsidiário reservado para as mulheres, daí o tema do personagem mítico Lilith, que teria sido a primeira mulher de Adão, mas que se recusou a ser submissa. Lena também não quer se submeter, ela é independente e paga o preço pela sua decisão.

Seu livro faz referências ao teatro. Você é um amante da arte dos palcos? Gostaria de se aventurar na dramaturgia?

R: Amo o teatro. Em certa fase da vida eu vivia a frequentar os, assim chamados, enterros dos espetáculos (jovenzinho não tinha dinheiro para pagar pelos ingressos). A última apresentação era reservada par a classe teatral e costumava virar uma festa. Fiz teatro estudantil que foi uma experiência fantástica. Os autores que me atraiam eram Vianinha, Grotowski, todo o teatro do absurdo, Ibsen. Quando Morte e Vida Severina foi librada eu assisti em um teatro de lona montado no Parque Ibirapuera. Foi inesquecível, bem ao lado do quartel do segundo exército. Me recordo como hoje das montagens de Cemitério dos Automóveis, do Teatro de Arena e tantos outros. A capa do Arquivo dos Mortos tem uma foto que eu fiz do palco do memorável TAIB (Teatro de Arte Israelita-Brasileiro) que em breve voltará a ter vida. Antes da pandemia eu participei do curso com a incrível Denise Stoklos, a mentora do Teatro Essencial. Amo o teatro.

“O arquivo dos mortos” é seu segundo romance e quarto livro. Quais são seus planos daqui em diante?

R: Retomarei a narrativa curta. O projeto já foi iniciado. Não creio que o conto tenha menos valor do que o romance. Eu gosto de praticá-lo.

Como você mesmo lida com a ideia da finitude/morte?
R: Como todos nós. Ignorando a sua presença na maior parte do tempo. São sempre os outros que morrem, não é mesmo?

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