Natureza é protagonista em romance sobre a Ditatura Militar

“No fundo do oceano, os animais invisíveis” (Ed. Reformatório), novo romance da escritora e editora Anita Deak, fala da reintegração do homem à natureza ao colocar o narrador-personagem, Pedro Naves, numa batalha em plena floresta Amazônica. Com toques de realismo fantástico, o romance se passa no período da Ditadura Militar. Leia a entrevista com a autora.

 

O romance “No fundo do oceano, os animais invisíveis” sugere, através da linguagem, uma espécie de reintegração ou fusão – muito bela – do homem com a natureza. Acredita que essa seria uma maneira de redimir todo o mal que a raça humana vem causando ao planeta?

 

R: Eu acho que seria uma maneira de reverter, inclusive, o mal que a raça humana vem causando a si mesma. O processo de se alienar da natureza – entendê-la apenas como beleza ou tratá-la de maneira predatória – é resultado da incapacidade de olhar para a fauna, a flora e os elementais e entender que somos parte disso, que a natureza deve ser respeitada não apenas como alteridade, paisagem, cenário. Ela deveria ser respeitada internamente, pois somos compostos de água e dependemos de animais, das plantas, do ar, da terra e do fogo para viver. Existimos graças a eles e, a meu ver, é preciso honrar e integrar aquilo que nos sustenta.

 

Você se considera herdeira de Guimarães Rosa? Quais outros autores influenciaram ou inspiraram sua literatura?

 

R: Rosa é uma grande inspiração, de fato, mas peguei outra tangente. Ele trabalha muito com adição de preposições e prefixos na construção do estilo, só pra citar uma particularidade, e fui pelo caminho contrário, o da supressão. Existe algo em comum que é a busca pela paisagem sonora do texto. Nossas paisagens são diferentes, claro, mas o respeito de Rosa à sonoridade me inspirou demais. O som das palavras compõe uma narrativa subliminar nas minhas obras preferidas. Outros autores que são grandes referências: Vicente Franz Cecim, Almeida Faria e Maria Gabriela Llansol. Cecim, além da prosa poética de alta qualidade, tem um uso de tempo verbal atrelado à construção de personagem (e não apenas ao tempo em que acontece o enredo) que é de cair o queixo. Almeida Faria, pra mim, é o autor mais competente que já li na transição de diferentes narradores, ele vai da terceira para a primeira pessoa com uma sutileza encantadora. E a Llansol, ah, a Llansol é uma grande subversiva. Na tetralogia Livro das Comunidades, ela habilmente tira o personagem do centro da narrativa em vários momentos. Adoro autores ousados.

 

“No fundo do oceano, os animais invisíveis” chega às livrarias com o aval de dois premiadíssimos escritores da literatura brasileira contemporânea: Maria Valéria Rezende e Evandro Affonso Ferreira. Como conseguiu?

 

R: Li trechos e mais trechos do livro para o Evandro em nossos maravilhosos encontros semanais em cafeterias de São Paulo. Minha maior tristeza com a pandemia é essa, não poder mais passar horas e horas conversando sobre Llansol, Herberto Helder e ouvindo histórias maravilhosas do Evandro. Ele gostou do que ouviu e escreveu um texto, então eu escolhi um parágrafo e coloquei na quarta capa do livro. Sobre Maria Valéria, tenho muita admiração pelo trabalho dela e a devolutiva sobre o meu texto foi criteriosa. Ela é muito sensível, percebeu as principais questões e foi de uma generosidade ímpar, pois não nos conhecemos pessoalmente.

 

Apesar da prosa poética, seu livro tem raízes profundas fincadas na realidade brasileira ao incluir na história o mais longo conflito de resistência à ditadura militar, de 1972 a 1974. Como foi a pesquisa para retratar essa época?

 

R: Li pelo menos uns 50 livros, alguns deles sobre a Guerrilha do Araguaia e outros sobre a ditadura militar brasileira. Também assisti documentários, vídeos da Comissão Nacional da Verdade e de comissões estaduais. Além disso, li inúmeras teses de mestrado e doutorado sobre o tema e documentos oficiais. Só que eu não queria fazer um romance histórico, e sim um romance de formação. Então o que parou no livro foi aquilo que serviu à trajetória do meu personagem, Pedro Naves. Em muitos trechos, o que aconteceu é dito, claro, mas não é o cerne. Eu desloquei o cerne para o mundo interno do personagem, para como ele reage. Desloquei o cerne também para o cenário. Construí com o realismo mágico algumas passagens para abordar questões simbólicas. Eu acho que a literatura não deve tentar representar cabalmente a realidade, aliás, neste sentido eu me considero uma expressionista. No expressionismo, predomina a visão interior e até a deformação como ferramenta para expressar sobretudo a subjetividade. Pra mim, a objetividade absoluta é utópica. Sim, não há nada no meu livro que não tenha historicamente acontecido, mas não são os fatos o principal vetor, mas a subjetividade do personagem e a expressão do tempo-espaço psicológico dele.

 

Você nasceu em Belo Horizonte, morou no Norte do país e hoje vive longe dos grandes centros, à beira do mar no litoral de São Paulo. Como essas andanças pelo Brasil influenciaram a sua escrita – da escolha dos temas à dicção literária?

 

R: Eu tenho uma relação antropofágica com os espaços. Morei em Belo Horizonte, Visconde do Rio Branco (MG), Rio de Janeiro, Manaus, São Paulo e agora estou em Peruíbe, no litoral sul. As paisagens me influenciam muito. Eu observo e experimento para depois buscar uma linguagem pra elas. A experiência no Amazonas, por exemplo, foi fundamental para a construção do No fundo do oceano, os animais invisíveis. Lá, visitei batalhões de fronteira, fiz sobrevivência na selva e conheci lugares que só o exército tem acesso (inclusive fui com eles). Quando dava quatro da tarde na mata, a escuridão descia e os ruídos dos animais e do vento, à noite, compunham uma atmosfera muito peculiar. Não era exatamente bonito, esta não é a palavra, definitivamente. Era assombroso e arrebatador com toda luz e sombra contida nestas palavras. Eu regurgitei a minha floresta em No fundo do oceano, os animais invisíveis.

 

Além de escritora, você é professora de escrita criativa, editora e ainda produz o podcast Litterae junto com Paulo Salvetti. Que horas você se senta para escrever?

 

R: Eu não escrevo todo dia. Não tenho cronograma definido. Sigo o meu tempo interno. Estudo todo santo dia, mas quem manda no tempo da minha escrita é algo que eu não consigo nem definir. Às vezes eu escrevo um capítulo e apenas sei que preciso de um tempo de elaboração antes do próximo. Então eu estudo e de repente sei que devo voltar a escrever. O No fundo do oceano, os animais invisíveis foi escrito em três anos e reescrito dez vezes. Eu trabalho de dez a doze horas por dia, inclusive sábados e domingos (algo que quero mudar este ano).

 

Quais são seus planos e projetos para 2021?

 

R: A partir de julho, minha agenda de edições e leituras críticas vai ficar mais tranquila, então voltarei à escrita do meu terceiro romance, ainda sem título. Meu principal projeto em 2021 é avançar nele. Deixo, para quem quiser ler, o início:

 

“Ainda um quase, Sebastião Coriolano não tinha face. O perfil cônico do espermatozoide foi recebido pelo ovo, as células se dividiram, e lá pelas tantas resolveram-se a ter um representante: um rosto. Na busca desse rosto que Sebastião Coriolano viria a ter, plasmaram-se as faces dos seres do mundo. Atravessaram Coriolano e cantaram nele seus registros, e foram apagando-se uma a uma até que se moldasse, nesse movimento de ir e vir, a curva do nariz aquilino e a boca em greta fina.

 

Nesse momento anterior, sem rosto, Sebastião Coriolano não conhecia o medo. O rosto acontecia, e ele estava tranquilo por começar a viver daquela forma, em trânsito, enquanto o corpo crescia tímida argamassa. Quando se formou por último a ponta do nariz apontada para baixo, em hárpia, e a mãe estourou o último grito liberando o bebê ao mundo, Coriolano levou as pequeninas mãos à cara e percebeu-se alguém, um alguém definitivo. O rosto parecia seu primeiro território conquistado.”

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