Olhar literário que ilumina o breu

A história de uma família contada através de suas mulheres: Úrsula, Edna, Inácia, Marli e Aline. Cada uma retrata as angústias e as ambições de sua geração, mas também a inércia e a baixa auto-estima de uma classe social pouco favorecida, assombrada diante do mundo e de suas próprias escolhas. Esse é o tema de “Breu” (Ed. Faria e Silva) novo romance do escritor e diplomata Mário Araújo, também autor de “A Hora Extrema” (7Letras), ganhador do Prêmio Jabuti 2006 e “Restos” (Bertrand Brasil). Ele conversou com a Oasys desde Xangai, China, onde vive.

 

O romance “Breu” conta a história de várias mulheres de uma mesma família. O narrador é sempre em terceira pessoa, mas, mesmo assim, como foi o desafio de descortinar vários mundos através do olhar feminino?

 

R: No início, não pensei muito se era um desafio ou não. Queria escrever a partir de algumas histórias e traços psicológicos que eu tinha em mente e que achava interessantes. Depois, temi que as vozes femininas não estivessem adequadas, ou que eu estivesse recorrendo a clichês para caracterizar as personagens. Concluída a primeira parte do romance, que narra um dia na vida de cada uma das protagonistas, pedi a algumas pessoas – sobretudo mulheres –, boas leitoras, que lessem e opinassem. Incorporei algumas sugestões, mas não foram muitas. Foi uma experiência muito interessante explorar o olhar feminino em diversas situações. São mulheres de diferentes idades também (há uma criança, uma anciã, uma jovem mãe). Em alguns casos, a mesma personagem é mostrada em épocas diferentes da vida.

 

Você tirou dois anos de licença não remunerada para investir na escrita do romance. Quando e por que tomou essa decisão? Como foi esse processo?

 

R: Há alguns anos vinha planejando esse período sabático. Queria não somente produzir um livro, mas também viver a experiência de dedicar os dias inteiros à escrita. Uma antiga fantasia. Não cheguei a terminar o livro durante a licença, ainda passei algum tempo escrevendo e revisando antes de publicá-lo. No período sabático você tem que se aprender a se organizar, tem que se disciplinar para fazer algo que ninguém está pedindo que você faça. A sociedade, pelo menos no Brasil, não pede livros de ficção. Muita gente nem vê sentido na literatura de ficção. Quando lê, prefere as histórias “baseadas em fatos reais”. Durante a licença, tive que descobrir os métodos de trabalho que me serviam. Descobri que gosto de trabalhar de manhã bem cedo. Não sabia disso antes.

 

Nascido em Curitiba (PR), em uma família de classe média baixa, você se tornou diplomata brasileiro e morou em diversos países do mundo. Como avalia sua trajetória e como ela influenciou a realidade retratada no romance?

 

R: Influenciou muito. Quando eu tirei meu período sabático, ainda não sabia exatamente sobre o que iria escrever. Tinha muitas ideias, muitas anotações, mas não exatamente um projeto. Comecei a ler aquilo tudo para decidir que história eu poderia tirar dali. De repente, me ocorreu que a relativa ascensão social que eu tive ao me tornar diplomata era um trunfo a ser explorado. Tinha acesso a dois mundos bem distintos, que, no Brasil, não se comunicam. Não queria, neste primeiro trabalho, lidar com personagens intelectualizados, capazes de compreender e expressar suas angústias, como tantos personagens-narradores que são eles próprios escritores. Preferi desenvolver personagens precários, assustados com seu destino, inseguros com suas escolhas.

 

Quanto a ter vivido em diversos países, acho que eu já estava preparado para isso e nem mesmo sabia. Gosto de me sentir estrangeiro. A sensação de estranhamento é estimulante. É o que ocorre na literatura, onde é preciso olhar para as coisas corriqueiras e estranhá-las, encontrar nelas algo insólito.

 

Autor de dois livros de contos, um deles premiado com o Jabuti, foi difícil para você passar da narrativa curta ao romance, considerando que “Breu” tem muitos personagens e se passa em períodos históricos diferentes?

 

R: Eu tinha a ambição de desenvolver uma narrativa mais extensa desde o início, desde que decidi me tornar escritor. Pensava em grandes estruturas, numa arquitetura complexa, certamente influenciado por algumas obras complexas com as quais me deparei, até meio por acaso, como Ulisses. Me apaixonei por aquelas múltiplas camadas de significado superpostas. Ficava me preparando para um dia me dedicar a um enredo que contivesse muitas histórias, movimentos de tempo e espaço. Os contos surgiram em paralelo, talvez da necessidade de contar algumas histórias urgentemente. Queria botá-las logo na rua, publicar algo de uma vez, ainda mais porque eu sou um escritor tardio – já tinha quase 40 anos e não havia publicado nenhum livro. E adorei a experiência com as narrativas breves. Assim que terminar o que estou escrevendo agora – o segundo romance – vou voltar a elas. Este ano, numa homenagem ao grande Sergio Sant´Anna, parei de ler romances por um tempo e reli vários contos dele. Foi bom para recordar que a vontade de escrever contos está intacta.

 

Como está sendo a experiência de morar na China, com 11 horas de diferença no fuso horário do Brasil, e onde a pandemia do vírus começou? Como é sua rotina? Faz isolamento? Consegue escrever?

 

R: Praticamente todo lugar é bom para ler e escrever, o importante é haver tempo. A partir de um certo ponto, só o tempo importa. Muitas vezes amigos me estimularam a abraçar esta ou aquela tarefa laboriosa, dizendo que me traria ideias interessantes para escrever. Mas eu acho que não adianta ter novas fontes de ideias se não houver tempo para transformá-las em texto. É como estar com o tanque cheio de combustível: se colocar mais, ele vaza; a única coisa a fazer é rodar. Com relação à China, me sinto privilegiado por morar aqui, por poder conhecer um pouco da Ásia (queria viajar bastante, mas o COVID-19 interrompeu o projeto). Na Ásia vive 60% da população do planeta. As Américas, por exemplo, são desertos se comparadas a ela. Como disse, acabei descobrindo que tenho prazer em me sentir estrangeiro, e a China é um ótimo lugar para isso. Minha rotina tem deixado pouco tempo para escrever. Além do expediente de oito horas, tento aprender um pouco de mandarim, estudar música e ler. Tento ler o máximo que posso, ficção e não ficção – seria um desperdício morar na China e não ler sobre a cultura do país. Aderi ao audiolivro para poder ler enquanto vou para o trabalho (sempre a pé) e enquanto faço ginástica. Talvez devesse abandonar e ficar somente com o Consulado e a escrita, mas não consegui resolver o problema da curiosidade nômade. Sinto que ainda vou me arrepender. A única esperança é ter uma vida longa e saudável, algo que foge inteiramente ao meu controle. Em suma, um cenário angustiante.

 

O começo da epidemia foi assustador. Num dia, havia 100 casos e não sabíamos se no dia seguinte seriam 150 ou 150 mil. Tampouco havia pistas sobre a forma de transmissão do vírus. Tínhamos medo de abrir a porta de casa, de tocar nos objetos. Mas a quarentena em Xangai não durou muito. As diferentes atividades foram sendo retomadas pouco a pouco, mas com todos os cuidados necessários, máscaras, luvas, distanciamento. Mesmo assim, foram três meses saindo de casa só para trabalhar. Eu tive mais tempo para escrever. Mas, no geral, minha rotina faz com que os projetos avancem lentamente. Como consequência, você acaba produzindo em menor quantidade, mas tenta dar mais densidade ao que produz.

 

Você acompanha o panorama da literatura brasileira contemporânea mesmo longe do Brasil? Quais livros de autores brasileiros leu recentemente? Podemos ser otimistas com relação a publicar livros de ficção no Brasil?

 

R:  Acompanho notícias, vejo algumas “lives”, mas não tenho conseguido ler muita coisa. É difícil o acesso ao livro físico aqui e já desisti de tentar gostar do e-book. Li “A Tensão Superficial do Tempo”, do Cristóvão Tezza, “Verão Tardio”, do Luiz Ruffato, e estou lendo “Solução de Dois Estados”, do Michel Laub, porque amigos me mandaram. Vou colocando o que me interessa numa lista., que já está bem grande. Quando puder ir ao Brasil, vou voltar com a mala cheia. Com relação à publicação de livros de ficção no Brasil, honestamente não vejo muita razão pra otimismo. Acho que vai ficar mais ou menos como está, ou, com sorte, talvez volte à situação de 10 anos atrás. No entanto, seguiremos escrevendo e tentando publicar. Quanto mais, melhor. Isso não pode parar.

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