O lado oculto de uma família disfuncional – do dicionário: algo que não está funcionando, que apresenta defeitos ou problemas, ou que não cumpre a sua função –, ou de todas as famílias disfuncionais em um mundo cada vez mais disfuncional. A escritora Lara Haje toma as situações desse cotidiano e as revira como fruta aberta ao meio, revirada ao contrário, entranhas expostas, em seu livro de estreia, “Eu não disse” (Ed. Cachalote). São contos que também podem – e devem – ser lidos como romance, e que a despeito dos temas duros que encerram, contém humor. Leiam a entrevista com a autora.
O livro abre com o “dia seguinte ao enterro”: alguém tirou a própria vida, mas esta precisa continuar. O suicídio é tabu e existe um acordo entre os meios de comunicação para não os noticiar. Foi preciso coragem para escrever esse livro?
R: Não, porque não achei que seria lida. Por meio da ficção, fiz uma exploração das minhas angústias, escrevi talvez para me organizar por dentro, mas, para expor o resultado, as entranhas reviradas, foi preciso muita coragem sim. E, numa sociedade em que os casos de suicídio e de transtornos mentais aumentam, acho fundamental conversar sobre isso e sobre o silenciamento em relação às dores e tragédias familiares.
A narrativa é rápida, mas as situações são vistas e sentidas com profundidade. Como desenvolveu a sua técnica?
R: A escritora Noemi Jaffe tem uma frase de que gosto muito: se você quer escrever sobre o rio, seja o rio. Por meio da imaginação, ousei experimentar ser diferentes personagens do livro. No caso da Fabiana, muitos sentimentos dela coincidiam com os meus, autora, no momento em que escrevia (embora já não me reconheça tanto nela). Os sentimentos, a empatia, a observação, a pesquisa e a linguagem compõem a técnica.
A vida seria impossível sem humor. Narrar a morte também requer humor? Não escancarado, mas fino, nos detalhes, nas entrelinhas – foi um caminho que encontrou?
R: Na psicanálise, o chiste aparece como estratégia de defesa psíquica, mas às vezes a gente precisa mesmo de estratégias. Em certos momentos a vida fica tão trágica que se aproxima do cômico. O livro envolve um luto difícil, de uma morte por suicídio, que envolve muita culpa, reflexão, por parte de quem fica, mas, mesmo quando tudo parece sombrio, a gente pode e deve rir da graça de uma criança, de si mesmo. É meu caminho.
O livro foi publicado através de financiamento coletivo pela Editora Aboio, cuja curadoria é excelente. 249 pessoas apoiaram a edição e seus nomes constam no final. Como foi a experiência?
R: Embora a Aboio/Cacholete use uma plataforma de financiamento coletivo, acho que o termo preciso é pré-venda, porque a pessoa tem a contrapartida, ela recebe o livro. A estratégia é utilizada por editoras pequenas e médias, que fixam uma cota mínima de livros a serem vendidos, para que a publicação de autores menos conhecidos seja viável sem custo para esses autores. Essa proliferação de vozes é muito rica para a literatura.
Você é de Brasília e, além da capital federal, viajou e fez lançamento em São Paulo e fará no Rio de Janeiro e na FLIP, em agosto. Como está sendo esse rolê? Vale o investimento?
R: O livro só se completa com a leitura, e conversar sobre o livro amplia a percepção sobre ele, amplia o próprio livro. Eu achava que tratava de dores, de solidões, muito particulares, e é bonito ver outras pessoas tocadas por elas, é uma forma de conexão, é o que a arte, a literatura, faz com a gente. Como é meu primeiro livro de ficção, também foi crucial a leitura crítica de outros escritores, para me sentir legitimada como escritora.
Como sua família recebeu o livro?
R: Meus filhos tiveram certa dificuldade em entender como uma história baseada em alguns fatos reais poderia ser lida como ficção, o que o livro de fato é, se preocuparam com o olhar do outro. Se incomodaram sobretudo com os títulos “Filho”, “Filha”, que surgiram com o livro quase pronto, para que uma linha narrativa fosse construída, uma coesão, mas que refletem sobretudo uma geração. Mas apostei no entendimento gradual deles sobre o processo de construção literária, que aos poucos veio, para minha alegria.
Tem um novo projeto em vista? Pode adiantar algo?
R: “Eu não disse” não é o livro que eu gostaria de ter escrito, é um livro que se escreveu, o possível em certo momento da minha vida; é duro e cru, a pedra que sai da boca da Fabiana no conto ou capítulo “Você”. Talvez comece o próximo onde este terminou. Gosto de passear pela temática relações afetivas e sexuais, mas a forma, a linguagem ainda está aberta, surgindo aos poucos; quero continuar deixando que a escrita se imponha por si, a partir do que me move por dentro.