Samaúme-se para transformar vivências doloridas em poesia

Flávia Muniz Cirilo

Samaúma é a “rainha da floresta”, árvore sagrada para os indígenas, que a consideram a “árvore da vida”. Não por acaso este é o título do novo livro de Flávia Muniz Cirilo: “Samaúme-se: é tempo de pés na terra” (Edite). A obra reúne pequenos contos que podem ser lidos em fluxo contínuo e formam um mosaico memorialístico sobre a infância, marcada pela esquizofrenia do pai, e a bela convivência com o avô, embalados em canções de Chico Buarque na vitrola, futebol na TV e o radinho de pilha, além dos choques elétricos aplicados em seu pai. Flávia nasceu no Rio de Janeiro e também é cantora e compositora. Leiam a entrevista com a artista.

Você é viajante, morou em várias cidades diferentes e diz reunir elementos das culturas indígena, africana e europeia para expressar sua percepção do Brasil em sua obra escrita e musical. Como se dá esse amálgama?

R: Me sinto como Ítalo Calvino e suas cidades invisíveis. Meu avô era baiano, minha tataravó pernambucana, minha bisavó mineira, meu outro avô português. Morei a maior parte da vida no Rio de Janeiro. Nasci na Tijuca e morei na roça da Tijuca. Agora estou uma temporada na serra. Penso que minha maior viagem foi astral e desta experiência nasceu a busca pelas raízes brasileiras, até me tornar uma guardiã dos rumos do Bem Viver.

Por meio de poesias e prosas poéticas, você constrói uma narrativa auto ficcional que evolui para uma reflexão sobre o mundo contemporâneo e o modelo econômico perverso que nos rege. Como chegou a esse modelo de escrita para seu livro?

R: Gosto muito de Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Manoel de Barros e Mia Couto. No meu entendimento, estou sempre falando sobre o mesmo assunto na minha expressão. Havia ensaiado uma autobiografia, mas quando já estava pronta (doce ilusão) descobri várias coisas da minha vida que eu não sabia. Me senti lendo um livro onde as primeiras páginas estavam arrancadas. Precisei elaborar uma autoficção para dar conta de narrar o que ainda está se ajeitando em mim.

A obra contém textos sobre comunhão com a natureza e elementos ancestrais. A programação visual do livro e da sua rede social @flaviamuniz.frutifera converge para esses temas. Qual é a importância deles em sua vida e para sua criação artística?

R: A verdade é que o primeiro poeta que conheci foi um João-de-barro. Eu morei numa casa com um jardim imenso e aqueles verdes todos construíram os receptáculos da minha memória. Eu sonhava com um ideal de vida que ia na contramão do que as sociedades ocidentais estão construindo ao longo da história. Eu me coloco disponível a cocriar o mundo que quero habitar, dando as mãos para as culturas regenerativas e para a ancestralidade.

Você é cantora e compositora e sua pesquisa se estende à esfera musical. Como se divide para compor, tocar, cantar e escrever? A música compete com a literatura ou elas se complementam?

R: Cheguei em um ponto onde procuro criar um imenso bordado. Acho que isso nasceu de um ikigai, onde Bem Viver está no centro criando a interseção de tudo que faço. Além disso, tem o estudo da antroposofia, dos saberes da terra e uma dedicação ao autoconhecimento no despertar da consciência. Compreendo que a literatura é uma bússola que integra a multilinguagem da minha expressão na direção da minha visão de mundo.

“Samaúme-se: é tempo de pés na terra” foi contemplado no Edital Pró-Carioca, categoria Literatura e Publicações Cariocas, da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro. Fale um pouco sobre a relevância do apoio do poder público para a realização de projetos culturais como o seu.

R: Há um texto do Betinho que me marcou profundamente. Ele diz “A cultura está entre nós, sempre. É no campo da consciência que o mundo se faz ou se desfaz, é nesse universo da imagem, do som, da ação, da ideia. Tudo se resolve na criação.” Para mim é um marco ter um projeto aprovado nesse edital da Lei Aldir Blanc e ainda ganhar a chancela “Rio Capital Mundial do Livro”. Estou muito honrada com esse reconhecimento e muito agradecida por esse momento. Duzentos exemplares do livro “Samaúme-se: é tempo de pés na terra” serão distribuídos para as bibliotecas municipais do Rio de Janeiro. Eu desejo um lindo caminho para o livro e para a leitura. Que possamos criar uma comunidade de leitores e mentes pensantes que movam a Terra para a melhor versão de sua missão planetária.

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