O inefável

“Nos lugares, após frequentados por pessoas diversas, há sempre um pouco delas: odores, raspas de pele, pelos, salivas, lembranças sonoras, humores vários. Grudam-se às paredes, tecidos, pisos. Por vezes, varam-nos. Os lugares todos são palimpsestos de visitas.” Assim abre “Fantasma”, do escritor, professor e cineasta Nilton Resende. Através de textos curtos em que três vozes se alternam e se sobrepõem de forma simultânea, o romance conta a história de uma entidade que habita um quarto de hospedaria, e que busca captar a essência dos que por ali transitam – o inefável. Leiam a entrevista com o autor.

 

Fantasma e Diabolô dialogam entre si, apesar de o primeiro ser romance e o segundo, contos; e do hiato de 10 anos entre eles: ambos são livros curtos e impressionantes. De onde vem a sua literatura?

 

R: Da memória e da observação. Eu me acho um escritor de pouca efabulação; minhas narrativas parecem mais partir de coisas da memória, expandindo-as. Por isso os livros serem curtos. E talvez também por isso, por eu não me achar muito criativo quanto a colocar muitos eventos em meus textos, talvez por isso eu pegue os poucos eventos e me detenha sobre eles, sobre seus detalhes, estendendo-os, perfurando-os, cercando-os, numa espécie de estase — ou talvez eu nem consiga isso, mas na verdade ainda busque fazê-lo, alcançá-lo, esta coisa parada, esta lentidão.  Na arte, interessa-me muito a lentidão.

 

Fantasma transcorre entre narrativas e tempos diferentes, em harmoniosa construção capaz de inocular no leitor os sentimentos e sensações de seu narrador-observador. Como chegou a essa voz, ou a essas múltiplas vozes?

 

R: Fantasma apareceu-me primeiro em 2012, e fiquei escrevendo-o até 2021 (com intervalos durante os quais a fonte secava). Durante esses nove anos, talvez o mais desafiador tenha sido criar um modo de representar as distintas vozes: narrador, fantasma, demais personagens. Estou contente com a forma final. Acho que ela dá conta do que eu sonhei para o livro, e foi realmente uma forma pensada para esse livro em específico, pois, para mim, Fantasma não é uma história que existe porque é narrada, mas que é narrada porque existe. Assim, o narrador não tem domínio sobre as falas das personagens, que se interpõem sobre o narrado. São instâncias distintas: a narração e as falas, como se elas sobrepujassem o discurso a seu respeito. E isso é uma obsessão minha: isto de buscar, na literatura, tratar de como o discurso sobre algo tem a enorme arrogância de querer sobrepujar-se ao algo.

 

Uma nova edição de Diabolô, revista, atualizada e com nova capa, chegou ao público pouco antes de Fantasma. Quais foram as mudanças no livro?

 

R: Em alguns contos, mexi pouco, alterando algo nas pontuações e buscando frases mais exatas. Dei mais espaços para personagens coadjuvantes, dando-lhes mais falas, caracterizando-as mais, enriquecendo a elas, a suas relações, a seu mundo; tornei uma cena mais silenciosa e imagética… Também mudei a ordem de apresentação dos contos no volume. Fiz a mudança buscando certa modulação no livro, dividindo-o em duas partes: a primeira, com os primeiros contos escritos e os de “mais fácil leitura”; a segunda, com os contos “mais maduros” e de “leitura mais exigente”.

 

Ambos os livros trazem, no final, curiosas e ecléticas efemérides que correspondem aos seus lançamentos. De onde surgiu essa ideia?

 

R: Na minha adolescência, por diversos motivos, eu tinha paixão por duas editoras: Nova Fronteira e José Olympio. Eu amava os colofões da José Olympio, onde sempre havia efemérides, no mais das vezes relacionadas a artistas. Então, nos livros do selo Trajes Lunares, do qual eu sou editor, decidi que teríamos efemérides nos colofões. Efemérides escolhidas pelos autores dos livros, citando pessoas, obras, eventos de seu afeto.

 

Você é estudioso da obra de Lygia Fagundes Telles e se dedica a divulgá-la de diversas formas. O quanto essa escritora o inspirou e/ou influenciou, e por quê?

 

R: Costumo dizer que muito do que sou eu devo à Lygia e sua obra, que comecei a ler aos dezesseis anos de idade, com As meninas. Muito do que aprendi sobre mim mesmo e as pessoas foi através de seus livros. Como professor, há 24 anos, sempre, em minha primeira aula, eu leio “Venha ver o pôr do sol” para meus alunos, tratando depois de como esse pequeno conto é uma grande obra-prima. As obras de Lygia me deram a consciência sobre a importância de se escolher/decidir com exatidão a forma de narrar, a forma propícia para a história que se quer contar. Também me deu a matéria para meus filmes: o curta A barca (2020), baseado no conto “Natal na barca”; e futuramente o longa Edifício Lygia, que traz uma fusão de personagens suas e baseia-se principalmente nos contos “A medalha”, “Antes do baile verde” e “Emanuel”.

 

No âmbito audiovisual, além de ator, você é preparador e diretor de elenco, e realizou como roteirista e diretor o curta metragem “A barca”, baseado em um conto da Lygia. Como se divide entre essas atividades?

 

R: Sempre falo que tenho Sol em Gêmeos na Casa 1 (casa de Áries), Ascendente em Gêmeos, Mercúrio em Gêmeos e Lua em Libra. Mas, para além disso, dessa predisposição para a variedade, o que me atrai mesmo é o humano, sua complexidade, a construção de personagens, de cenas que nos mergulhem em nosso mistério. E, seja na literatura ou no teatro ou no cinema, é sempre isso o que estou buscando. Até nas aulas,  com meus alunos, é isso que reitero, essa inapreensibilidade do que somos. Mas confesso que a literatura parece ser meu centro, parece que tudo parte dela — tanto que pretendo me especializar em adaptações cinematográficas de obras literárias.

 

“Fantasma” foi publicado pela Editora Trajes Lunares. Mais sobre o livro aqui

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