No Carnaval de 1985, José Afonso, advogado nascido na Amazônia e criado na cidade fictícia de Miradouro (Pará), aguarda a namorada Alice em seu apartamento, em Copacabana, enquanto mergulha no passado e tece um vívido retrato de uma época. O Brasil já enfrentava alguns dos seus problemas mais desafiadores, e que permanecem até hoje: a injustiça, o racismo, o legado da ditadura, a violência contra a mulher, a desigualdade social. Com sensibilidade narrativa, Jairo Carmo criou um tocante romance de formação que faz refletir sobre a passagem do tempo e os revezes e aprendizados da vida. Leiam a entrevista com o autor de “Carnaval amarelo” (Ed. 7Letras).
“Carnaval amarelo” é um romance autobiográfico? José Afonso é seu alter ego?
R: “Carnaval amarelo” é um suspense romântico com desvios autobiográficos. José Afonso é personagem, meu dileto narrador-protagonista. Recordando Cícero, que cunhou o termo alter ego como parte do seu discurso filosófico, no século I, digo que fiz de José Afonso um confidente ou um amigo chegado em quem se deposita total confiança. Enfim, um outro eu que me representa muito bem.
Amarelo é uma cor alegre que condiz com o Carnaval. Já o romance contém passagens tristes e tensas, pois também fala de crimes, impunidade, desilusões amorosas. Como o título dialoga com sua obra?
R: Pois é, o amarelo simboliza o sol, o verão, a felicidade. Quase invariavelmente está relacionado ao amor, à alegria, à beleza. No entanto, ao lado dessas sensações, temos o sorriso amarelo. Crisântemos de cor amarela é uma das principais flores em velórios e cemitérios. Machado de Assis dizia que o amarelo era a cor do luto no carnaval. O caixão com o corpo do meu pai estava coberto de flores amarelas. Penso que tudo isso explica o título: Carnaval amarelo. Em que pese as passagens tristes da história, a par das desilusões amorosas, dos crimes, dos abusos, da impunidade, meu Carnaval só podia ser mesmo amarelo. Pelo respeito e gratidão ao meu falecido pai, que foi como uma “flor de ouro” na minha vida. E ainda, por óbvio, pela esperança de reconquistar o amor de Alice em meio à angústia de perdê-la.
José Afonso passa por diversas experiências e os leitores colhem seus aprendizados. “As pessoas fogem da verdade porque temem destruir as últimas ilusões que arrastam”. “Sentimos mais saudade de nós mesmo que das pessoas com quem cruzamos”. Qual tratamento deu ao texto para que vivências pessoais se tornassem ficção?
R: Boa pergunta: como transformar vivências em ficção? Todo escritor é plural, um ser colmeia que reúne, potencialmente, o bem e o mal. No seu universo íntimo, acaba refletindo a si, com suas vivências, e o mundo à volta. Demorei a encontrar uma voz convincente que falasse de mim e da história que eu queria contar. Buscava uma voz que ecoasse por semanas na cabeça de quem lesse, ela ou ele absolutamente confiantes, a ponto de jurar que tinham lido a mais pura verdade.
Recentemente você recebeu um prêmio por seu livro de contos “Depois de tudo” (Ed. 7Letras) em uma cerimônia no Copacabana Palace (RJ). Como foi a experiência e o que o prêmio significa para você?
R: Ah, foi bom demais. Prêmio é validação, reconhecimento. Todo escritor vive enfiado no mundo. Às vezes estranha e sempre se entranha. Nunca é um estranho. Escrevo como terapia, catarse. Encarno o mundo, as pessoas, as coisas que vejo. O prêmio que recebi pelo livro “Depois de tudo”, e com o nome de Clarice Lispector, significa que estou no caminho certo. Como escreveu Saramago, palavras não são inocentes, nem impunes. Livros são luzeiros, iluminações! Todo escritor, se pudesse, diria alto som: Escuta-me! Veja-me! Leia-me! Enquanto viver um só escritor, crianças, mulheres, homens, pobres, injustiçados, marginalizados, a natureza, todos viveremos. Então, vivam os livros! Vivam os prêmios literários. E viva a democracia fortalecida pela mais ampla liberdade de opinião, expressão e comunicação.
Você tem cinco livros de contos publicados, “Carnaval amarelo” é seu primeiro romance. Pretende continuar com a narrativa longa? Quais são os desafios deste gênero?
R: Escrever um romance é tão desafiador que Jorge Luis Borges, um dos maiores escritores latino-americanos, nunca escreveu um romance nem curto. Resolvi encarar o desafio, escrevendo meu romance ao fim do colegial, antes de entrar na Universidade, com o título de “Senhora imaculada”. Arquivei-o para tornar-me advogado. Na época ganhei menção honrosa da Academia Paraense de Letras com a peça “Nu”. Não podia, entretanto, seguir escrevendo porque precisava ganhar dinheiro. Mergulhei nos estudos, na vida profissional. Rumando ao anoitecer, agora juiz de direito aposentado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, tomei a decisão de voar atrás do escritor que extraviei. Em 2013 escrevi um primeiro livro, “Balaio de dois – vivências de um casal incomum e quase perfeito”. Jorge Viveiros de Castro me perguntou se eu tinha outras histórias. Sim, respondi. Mas acalentava, ressalvo, o sonho de resgatar meu velho romance da adolescência, “Senhora imaculada”, que revisado assustava pelo volume de mais de 400 páginas. Para viabilizar a publicação a saída foi desdobrá-lo em três livros. Assim é que “Senhora imaculada” deu origem a uma trilogia. Carnaval amarelo é o primeiro livro. Dito isto, é claro que vou continuar.
Como José Afonso, você nasceu em uma pequena cidade na Amazônia e foi para o Sudeste ganhar a vida. Em uma palavra, como definiria tudo o que viveu até agora?
R: Em uma palavra: milagre. Se o Papa Francisco nasceu no fim do mundo, como ele disse no início do seu pontificado, eu nasci depois do fim do mundo. Todavia, salvou-me a educação. Tive excelentes professoras, estudei nos melhores colégios. Fiz um ótimo curso de Direito na UFPA. Essa soma de milagres foi decisiva para tudo que conquistei com minha querida esposa, hoje aposentada como desembargadora do TFR2. De verdade, conquistamos muito além do que pedimos ou sonhamos.