“Elefantes no céu de Piedade” (Ed. Patuá), novo romance do escritor e jornalista Fernando Molica, se passa no início dos anos 1970 e tem como foco uma família suburbana, moradora do bairro de Piedade (RJ), favorável à ditadura de 1964. A aparente harmonia é interrompida pela chegada de um primo capixaba, universitário que, motivos de saúde, precisa passar uma temporada na casa dos parentes. Logo descobrem que o rapaz não está doente, mas saiu de seu estado por ser procurado pela polícia política. Leiam a entrevista com com o autor.
Vamos começar pelo instigante título do seu livro: por que “Elefantes no céu de Piedade?
R: O título tem a ver com uma piada sobre dois mineiros que ouvi há alguns anos. Uma piada que trata de pessoas que fingem não ver a realidade, que tentam ignorar o óbvio, que tentam assim fugir do inevitável. Ao escrever o livro, achei que poderia usar essa historinha para o meu romance.
Um dos atrativos do romance é a minuciosa reconstrução histórica, com detalhes sobre automóveis, utensílios e canções dos anos 60 e 70. Fez pesquisa para compor esse “acervo”? Ou guarda tudo na cabeça? Ou usou a imaginação?
R: Citei quase tudo de memória, era criança nos anos 1960, comecei a entrar na adolescência na década seguinte. O que tive foi o cuidado de checar as informações. Houve também a preocupação de não fazer com que esses detalhes atrapalhassem a narrativa, são apenas elementos que integram a história, não podem substituí-la, disputar os holofotes com ela.
A ditadura é pouco abordada em obras de ficção no Brasil. Na Argentina, ao contrário, os anos de chumbo são tema recorrente. Por que essa diferença entre países tão próximos e que viveram esse drama quase ao mesmo tempo?
R: A abrangência da ditadura argentina foi muito maior. A população deles é muito menor que a nossa, mas o número de desaparecidos durante os governos militares é em torno de dez vezes superior ao registrado aqui. A matança produzida por lá gerou mais cicatrizes na sociedade. Além disso, há na Argentina um histórico de mobilização política muito maior que o nosso.
Tal qual o protagonista de seu livro, você também era criança, em Piedade, no período da ditadura. Quais são suas lembranças pessoais daquela época?
R: O livro é uma ficção, mas é claro que usei muito da minha memória, inclusive em relação à avaliação que se fazia do regime militar. Havia um medo da repressão, mas também aprovação à lógica de ordem implantada pela ditadura. E, principalmente, havia entusiasmo pelos resultados do tal milagre econômico. Naquele início dos anos 1970 muitos ganharam dinheiro, havia a ilusão do Brasil grande, a Bolsa de Valores batia recordes. Ações de grupos de esquerda, como sequestros de diplomatas e assaltos a bancos geravam medo, apreensão em Piedade.
O Brasil vive agora algo semelhante ao que se passou na década de 60? Acredita que a literatura é capaz de ajudar numa tomada de consciência, à semelhança do que acontece em seu romance?
R: Os processos são diferentes. Nos anos 1960 havia uma ditadura, pessoas foram presas, perseguidas, torturadas. É bem diferente do que ocorre hoje, apesar das ameaças autoritárias. Não vejo na literatura um poder de mudar a consciência das pessoas, mas acredito na sua capacidade de enxergar o outro, de lançar alguma luz sobre o que está nas sombras. O atual presidente nunca escondeu sua simpatia pela ditadura, e mesmo assim foi eleito. É preciso tentar entender as razões dessa certa saudade do autoritarismo que se manifesta em parte da população.