Em sua estreia na ficção, o escritor e pesquisador Alexandre Gossn usa seu arcabouço de conhecimentos nas áreas de ciências sociais para criar um romance picaresco com influências de Ariano Suassuna e Miguel de Cervantes, entre outros mestres da literatura presentes em sua trajetória de leitor. “Santo Adamastor” (Ed. Autografia) tem como protagonista um menino frágil e raquítico – sem bochechas –, considerado santo por sua mãe. Ele assume o papel e o leva às últimas consequências. Ambientada nas Minas Gerais de antigamente, a saga do santo-menino tem toques de realismo mágico e usa o humor para tecer críticas sobre política e religião. Leiam a entrevista com o autor.
“Santo Adamastor” foi escrito há muito tempo, mas só foi publicado agora. O que mudou no mundo e no livro desde sua concepção até o momento atual?
R: Santo Adamastor foi escrito nos anos 1990 e focado em retratar o interior do Brasil dos anos 60 a 70, e neste sentido, a obra nasceu sob o mesmo paradigma comunicacional do tempo em que ele buscava retratar: um tempo analógico. Em termos de tecnologias de comunicação, dos anos 60 aos 90, a TV reinou sozinha e, no interior, ainda havia forte presença do rádio. Dos anos 2000 em diante, a internet surgiu de forma avassaladora, mas isso não poderia existir na obra, por isso, o leitor não encontrará redes sociais na trama. Já do ponto de vista social, há semelhanças perturbadoras: Adamastor nasce a partir da observação da ascensão dos movimentos neopentecostais que pipocavam nas televisões dos anos 1990. Como autor, tentei desenhar um cenário onde os neopentecostais deixassem de ser minoritários para se tornarem hegemônicos. Mas isso era só um exercício narrativo. Eu realmente jamais supus que este movimento se tornaria tão grande a ponto de eleger bancadas inteiras no Congresso e inclusive um presidente da República em 2018. Neste sentido, o livro é morbidamente profético, só que de forma involuntária. O objetivo sempre foi o riso e não o susto. (risos)
Dá para sentir as influências de Miguel de Cervantes, Ariano Suassuna e outros mestres da literatura em seu livro. Além deles, quais escritores lhe servem como referência?
R: Em termos de arco narrativo e tecer algo que minimamente evocasse as sagas épicas de outrora, não há como negar a influência de Cândido de Voltaire. Adamastor tem algo de parvo como Cândido, mas é muito mais autoritário. Não dá para negar a influência de Machado de Assis também e o Alienista, já que o Dr. Sigmundo também se perde em uma poça de excessivo racionalismo como o Dr. Simão Bacamarte. Mas se for falar do tipo de humor, a maior influência literária talvez seja o Carlos Heitor Cony, além do humor dos Gossn, que é tremendamente peculiar. Mas também devo influência a outras artes: desejava celebrar também a figura dos road movies, onde o protagonista e seus parceiros realizam jornadas com grande significado para os seus propósitos e ao mesmo tempo, esse “se jogar na estrada” produz ação e entretenimento para o leitor. Cineastas como Walter Salles também são fonte de inspiração para mim, especialmente em Abril Despedaçado e Central do Brasil. Sou extremamente imagético e não são raras as ocasiões em que imagino uma cena e só então decido que preciso de uma história para contá-la.
Seus outros livros publicados são de não-ficção – “Fascismo pandêmico”, “Chapados de cloroquina” – e deixam claras suas opiniões de centro-esquerda. Como esses livros têm sido recebidos pelo público, considerando a polarização que vivemos atualmente?
R: Fui hostilizado e até ameaçado por algumas pessoas e elogiado por outras. Em certa medida, mesmo fora dos temas políticos corremos este risco ao publicar. Penso que não é exatamente a política que atualmente atrai o ódio para artistas e acadêmicos, mas sim, o que você mencionou: a polarização. Este fenômeno tem se revelado tão nocivo, que qualquer tema postado na net cria instantaneamente uma cisão, onde os dois lados se amam odiar. Por outro lado, não creio que foram as redes sociais que criaram essa característica na espécie humana. Em torno de 550 a.c, Esopo já ensinava na parábola do velho, do menino e do burro, que é impossível agradar a todos e quando decidimos ouvir todas as opiniões, no final damos voltas em círculos. Diria que um escritor precisa combinar uma dose necessária de empatia com uma dose saudável de indiferença.
Você vem se estabelecendo como escritor e formador de opinião na linha de Cortella, Karnal, Pondé. Por que publicar ficção já que, notoriamente, livros de ficção vendem menos que não-ficção em todo o mundo?
R: Considero um elogio ser comparado a este trio de pensadores públicos, embora pessoalmente jamais faria tal comparação. Publicar ficção é um sonho de criança, que foi desviado e adiado por contingências da vida, mas a fantasia sempre foi o meu lar. Mas não é só. O mundo acadêmico tem estado alerta a um fenômeno que diria ser uma das digitais da Pós-Modernidade: por questões identitárias, muitas pessoas estão perdendo a capacidade crítica. Fakenews e Deep Fakes são servidas às pessoas do café da manhã até o jantar, e o que as pesquisas revelam é que quanto menos lida e menos versada em literatura (incluindo a ficção) for a pessoa, maior o potencial desta em ser vítima de desinformação. Pode parecer paradoxal, mas não é: quanto mais se conhece as texturas, as nuances e as harmonias da ficção, mais sabemos distinguir a realidade da fantasia. Como as cadeiras de sociologia de arte têm ensinado mundo afora, se quer conhecer o mundo que o cerca, confira a arte que vem sendo produzida.
Você foi escritor convidado da Festa Literária de Poços de Caldas e Tarrafa Literária (Santos/SP), com destaque na programação. Como surgiram estes convites e o que eles representam para sua carreira de escritor?
R: Ambos os eventos foram muito importantes para uma carreira curta como a minha, afinal meu primeiro livro é de dezembro de 2019. O convite para a Flipoços surgiu a partir da apresentação de Fascismo Pandêmico pela minha editora ao staff do evento, que fez o convite. A partir daí conheci a Gisele Corrêa, organizadora do festival e fui convidado mais duas vezes, além de ter sido levado ao Festival Palavras de Fogo em Portugal também por ela, no período em que estava morando na Europa. O único festival que eu tinha participado até então fora uma live da Feira de POA e algumas entrevistas que dei. Não tinha nenhuma experiência. Com a Tarrafa foi diferente: com o sucesso de Fascismo Pandêmico fui à Bienal e o moderador do meu painel foi o José Luiz Tahan, diretor do evento. Então, após lançar Chapados de Cloroquina no Brasil e Portugal e voltar a morar aqui, surgiu o convite. Foi um evento muito marcante para mim, porque pude conhecer pessoalmente autores que aprecio imensamente como o Renato Janine Ribeiro (com quem debati no painel), Rita Carelli, Itamar Vieira e Miguel Nicolelis. Foi uma tremenda honra. Me senti uma banda de rock pequena abrindo para os Rolling Stones (risos).
A saga de “Santo Adamastor” foi dividida em três volumes e os livros II e III vêm aí. Por que a decisão de publicar três livros em vez de um?
R: Sempre fui apaixonado pelo formato clássico de início, meio e fim. Nas óperas, no cinema e claro, na literatura. Mas não era só: subjacente a uma história absurda, com personagens que podem evocar inocência e parecer tolos, desejava torná-los prenhes de contradições, incoerências, densidade e significados. E não queria fazer isso com pressa. Era preciso tratar a história como um agricultor: respeitar o tempo de cada evento, deixar que os fatos maturassem e as personagens agissem quase sem a minha interferência. De certa forma, o poder narrativo de se contar boas histórias com mais tempo tem ficado claro no streaming, onde muitos atores e roteiristas têm conseguido mais nas séries que nos filmes, trazer à tona vísceras tão profundas e íntimas de seus personagens que jamais seriam sondadas se não fosse o tempo para trabalhar a história. Queria para além da história de um menino sem bochechas que pensa ser santo, contar a trajetória de uma vida. Uma vida que fosse representativa da vida de todos nós, às vezes curta por ser maravilhosa, noutras longa por ser torturante.
Você se prepara para redigir sua tese de doutorado e o tema é o uso da palavra “liberdade” nos discursos políticos de direita e esquerda. Manter a ponte entre literatura e política é um de seus objetivos?
R: Provavelmente sim (risos). Não sou como o Cérebro (do Pink e Cérebro) que já tem um plano para dominar o mundo (risos). Após terminar um trabalho, em geral, sinto enorme vontade de realizar algo diametralmente oposto. Por exemplo, como Adamastor envolve uma trilogia com mais de 700 páginas e um convívio quase diário com o universo adamastoresco há mais de duas décadas, anseio por algo bem mais leve agora. Um livro de contos talvez. O tempo dirá. Algum muso, musa ou “cramunhãozinho” (risos) sussurrarão o que devo escrever no momento oportuno.
A tese de doutorado, no futuro, pode se transformar em livro? E quanto à ficção, vai continuar ou parar?
R: Creio que a tese de doutorado pode sim se tornar um livro. Provavelmente um ensaio. As eleições de 2022 movimentaram uma onda de desinformação imensa e mais sofisticada que a de 2018. E isso não vai melhorar assim do nada. As inundações no Rio Grande do Sul estão aí para provar que existe gente graúda que rentabiliza semeando o caos e rindo da dor alheia. Não sou otimista quanto ao futuro da democracia, não só no Brasil, mas no mundo. E penso não existir melhor motivação para produzir um livro de não ficção do que o pessimismo. Ele nos mantém alertas e historicamente falando, a democracia é uma conquista jovem e imperfeita, que demanda vigilância constante.