Poeta, compositora, cantora, psicanalista, professora. Assim é a multiartista baiana Andressa Nunes e “Um oceano devorará meu esconderijo” (Ed. Litteralux) é seu primeiro livro publicado. A obra reúne poemas com a voz da Mulher Apocalíptica “um trajeto feito de musicalidades e explosões”, segundo a autora. Dividido em cinco partes, o livro começa com uma apresentação de quem é a Mulher Apocalíptica; a seguir vem poesias sobre erotismo, política, redes sociais, amor, angústias da pós-modernidade. A parte final, “Burburinhos”, traz pequenas músicas junto a um primeiro choro: “o de nascer. De novo”. Leiam a entrevista com a escritora.
Em poucas palavras, quem é a Mulher Apocalíptica?
R: É uma espécie de personagem cuja voz aparece em muitas das minhas criações. Ela surge da água, depois do fim do mundo, como um avesso das epopeias. Quase uma entidade com afetos humanos, impotências e megalomanias costuradas com utopias. Ou talvez apenas uma muralha invisível para distanciar o meu nome dos disparates que costumo escrever em forma de poema. O leitor é quem escolhe!
Alguns poemas do livro foram feitos aos 18 anos, outros aos 20, outros aos 30. Como foi o processo de escolha dos textos para compor o livro?
R: Escolhi alguns dos poemas mais maduros como “A mulher apocalíptica na borda do inconsciente” e “Pátria”, mas quis deixar os mais “ingênuos” como uma forma de homenagear minha trajetória até aqui. Por exemplo, “Pena pesada” e “Agonias antagônicas” foram feitos para meu primeiro blog, Borboletas no Esgoto. Os mais recentes já foram pensados para o livro, para construir uma narrativa, uma linha que demonstre de onde estou partindo (dos sertões, do feminino, da identidade) e aponte para um futuro onde algo renasce e se revela, talvez o desejo mesmo da escrita.
Na parte intitulada “A Mulher Apocalíptica navega em seu tempo” as poesias versam sobre política, redes sociais e angústias da pós-modernidade. Em um mundo tão conectado e submisso à tecnologia ainda existe lugar para a poesia?
R: Não, não existe. Há muito tempo não existe muito lugar para a poesia. Existe lugar para os poetas, escritores, compositores, pesquisadores. Mas a poesia tem habitado um deslocamento contínuo e tenta aparecer nas brechas dessas muralhas digitais. Há lugar para influencers que produzem poesia; para os poetas, que circulam de forma restrita, sinto que há pequenos nichos dificílimos de entrar, como o dos poetas intelectuais, elevados, canônicos; e nichos dificílimos de sair, aqueles que apontam para a identidade cristalizada dos que são minorizados. Eu prefiro habitar os esgotos.
Você é cantora e compositora. Algumas poesias do livro foram musicadas por você? Quais? Onde ouvir?
R: Tenho mentido que o livro surge de uma canção chamada “Mulher Apocalíptica”, mas a verdade é que escrevo sobre ela há uns 15 anos, antes mesmo de começar a gravar minhas músicas. Mas um dos poemas, “Sem dó”, é uma letra de uma canção delicada, um samba nostálgico, que ainda pretendo gravar. Também gravei com Lucas Oliveira a delicada “Pátria”, com letra minha, presente no livro, e música dele. Outros ecos das mesmas ideias surgem no meu primeiro álbum, “Mandacaru Intergaláctico”(2020) e também no meu single mais recente, “Letra”, ambos em todas as plataformas digitais.
Você também é psicanalista e professora. Como a poesia se encaixa em sua rotina?
R: Não encaixa, ela hoje é refém de um tempo contrabandeado entre atendimentos, aulas e pesquisa. Mas posso dizer também que a dificuldade mesmo tem sido encaixar ser psicanalista e professora na rotina que é pensar em formato de poesia na maior parte do tempo. Todas as minhas ocupações atualmente, inclusive com a música e a psicanálise, derivam da minha relação com a escrita, então é como se ela estivesse e não estivesse em todos os lugares por onde deslizo. Uma coisa meio Heisenberg, meio Schrödinger, meio Zen. Três metades.
Na poesia brasileira contemporânea, quais são seus poetas favoritos?
R: Além de mim, cito alguns: A Mar Becker tem sido uma descoberta deliciosa; Conceição Evaristo tem alguns poemas que pra mim já são clássicos há tempos; Deisiane Barbosa, uma contemporânea made in Bahia; Ricardo Aleixo, que performa e deforma a poesia com um tom político e erudito; Adriana Lisboa, também um deleite constante; e a Adélia Prado, porque sim. Gosto também do futuro do presente que é Arnaldo Antunes. E da voz clássica e rebelde de Antônio Cícero, que nos ensinou tanto sobre o que é a vida em seu ato-poema final.
Quais são seus planos daqui para frente?
R: Terminar o doutorado, lançar músicas cada vez mais obscuras, lançar dois livros de prosa que já estão em processo e um dia escrever uma distopia sertaneja steam-punk com toques de Goethe e Camões. E passear com minhas cachorras hoje, às 17h, sem falta.