Como um movimento político nasce, se desenvolve, se consolida e, enfim, encontra limites a partir das pessoas que nele se engajam? Durante o doutorado em Sociologia na Universidade Estadual de Campinas, a pesquisadora Nara Roberta Silva, brasileira radicada em Nova York (EUA), onde atua como professora e pesquisadora no Brooklyn Institute for Social Research, se dedicou a estudar documentos, atas de reunião, publicações variadas e entrevistar pessoas que participaram do Occupy Wall Street – movimento de protesto contra a desigualdade econômica e social surgido nos Estados Unidos em setembro de 2011. O resultado dessa pesquisa está no livro “Contradições da horizontalidade: Uma análise do mo(vi)mento Occupy Wall Street e da insurgência no centro do capitalismo global” (Editora Appris). Leiam a entrevista com a autora.
Você chegou em Nova Iorque em 2014, quando OWS era algo recente. Ainda havia ecos do movimento nessa época? Caso sim, o que se falava?
R: Sim, havia ecos. Suas referências discursivas e visuais seguiam presentes; ainda se discutia bastante o que tinha acontecido anos antes e o que restava do movimento. Ao mesmo tempo, dava para sentir que estávamos numa fase de transição – em poucos meses, explodiriam os protestos do Black Lives Matter e o Occupy passaria a operar mais como memória e referência. Compartilhar dessa passagem do “aqui e agora” para a lembrança foi bastante rico para a pesquisa, porque me permitiu captar como o movimento era reinterpretado e reapropriado pelos participantes e observadores.
Quando e em que circunstâncias tomou a decisão de estudar o Occupy Wall Street?
R: Quando o Occupy estourou, eu estava concluindo o mestrado e começando a montar o projeto do doutorado. Meu interesse era estudar o tema da ideologia, mas o recorte ainda estava indefinido. Eu acompanhava o movimento à distância, pela internet, e fiquei muito impactada com o slogan “We are the 99%” – ele me pareceu um ótimo exemplo prático daquilo que eu queria investigar teoricamente. Decidi, então, que o foco do projeto seria o Occupy. Muita coisa mudou quando cheguei a Nova York, mas o slogan permaneceu central na pesquisa – embora de forma crítica. No fim, mostro que, apesar de poderoso, ele também escondia dilemas e limites da horizontalidade defendida pelo movimento.
Quais foram os maiores desafios ao empreender a sua pesquisa?
R: O primeiro foi lidar com a abundância de informações – uma quantidade enorme e descentralizada de documentos, publicações, vídeos, fotos. Por um lado, isso era incrível, pois dava acesso a muitas vozes e perspectivas; por outro, exigia um esforço enorme para não me perder na imensidão de dados. Com o tempo, percebi que essa multiplicidade não era apenas um “problema de pesquisa”, mas refletia o próprio caráter fragmentado do Occupy. O segundo desafio foi mergulhar nas entrevistas, lidando não apenas com variadas posições sobre o que havia se passado, mas também com questões pessoais, memórias sensíveis e muitas emoções.
Como encontrou seus entrevistados e como era a disposição dessas pessoas para falar?
R: Cheguei a Nova York sem conhecer ninguém, então, precisei criar uma estratégia para me aproximar dos participantes. Comecei frequentando manifestações, desde as mais grandiosas até aquelas com pouquíssimas pessoas. No início, eu priorizava eventos que fizessem referência direta ao Occupy ou usassem seus símbolos, mas logo percebi que os ex-participantes tinham seguido por caminhos diversos. Ampliei a busca e passei a circular por diferentes espaços políticos da cidade. Sempre que entrevistava alguém, pedia indicações, mas também seguia procurando novos contatos por conta própria para não ficar presa a um nicho. Todo o processo de entrevistas levou cerca de dois anos.
A leitura de “Contradições da horizontalidade” leva a crer que, por melhores que sejam as intenções, a democracia é algo difícil de ser praticado. Qual é a sua visão?
R: O Occupy tentou ressignificar o que normalmente se entende por democracia – não como um conjunto de regras institucionais, mas como uma prática cotidiana, vivida no corpo a corpo e na construção coletiva. Existe um componente crítico e pedagógico poderoso nisso e que não deve ser desconsiderado. Ao mesmo tempo, nessa concepção, a democracia exige tempo, dedicação e até habilidades que não estão igualmente distribuídas. No Occupy, havia ainda uma tensão constante entre garantir espaço para todas as vozes e conseguir agir em conjunto. Com isso, o movimento mostrou que a intenção de horizontalidade é importante, mas não basta para contornar divergências – democracia real é, justamente, saber lidar com elas.
Como foi a experiência de adaptar o texto acadêmico da tese de doutorado para algo mais palatável, para entendimento das pessoas comuns?
R: Revisitar a tese não foi fácil, mas a adaptação do texto acabou sendo muito gratificante e é coerente com o que faço hoje. Minha atuação profissional atualmente privilegia o diálogo para além da universidade e a produção de conhecimento como ferramenta de transformação social. Compartilhar uma pesquisa sobre um movimento formado por pessoas comuns em um texto acessível faz muito sentido para mim – era quase uma obrigação ética, eu diria.
“Contradições da horizontalidade” é o estudo de um caso da sociedade norte-americana. O que um pesquisador ou estudante brasileiros ganham ao ler o livro?
R: O Occupy foi um marco fundamental para a política norte-americana recente. Ele resgatou formas de mobilização e organização, colocou a desigualdade socioeconômica no centro do debate público e influenciou campanhas e lideranças que surgiram depois. Ao mesmo tempo, a horizontalidade que ele defendia não é exclusiva dos Estados Unidos – ela atravessa distintos movimentos ao redor do mundo, inclusive no Brasil. Estudar o Occupy ajuda a refletir sobre os potenciais e os limites dessa forma de organização, algo relevante para compreender mobilizações em outros países. Mesmo sendo um estudo de caso, o livro oferece ferramentas para pensar criticamente sobre democracia interna, organização e construção de unidade em meio à diversidade.
Ainda existem reflexos, hoje, do OWS na sociedade norte-americana ou tudo se perdeu?
R: Sem dúvida, há um antes e depois do Occupy nos Estados Unidos. O movimento transformou o vocabulário político e formou redes de ativistas que seguem atuantes em diversas causas e movimentos. No campo progressista, segue como referência central nas reflexões sobre disputa de narrativas, construção de alianças e estratégias políticas a curto e longo prazo. É um legado vivo, ainda que extremamente difuso, que ajuda a explicar o cenário político atual.
O candidato mais forte à Prefeitura de Nova Iorque é, atualmente, um democrata socialista de origem muçulmana. Quais são as chances de Zohran Mamdani ganhar a eleição e o que a vitória dele pode representar?
R: Mamdani está bem-posicionado, mas ainda temos alguns meses até a eleição e, nesse intervalo, muita coisa pode acontecer. Ganhar a primária já foi um grande feito; se conquistar a prefeitura, será histórico – e não é exagero. Estamos falando de um país sem um partido de esquerda forte, que impõe enormes barreiras a candidatos fora do mainstream e tem um longo histórico de tratar ideias socialistas, em quaisquer vertentes, como algo a ser combatido. Vale lembrar também que, no Occupy, um dos debates mais acalorados era justamente se valia a pena disputar o terreno institucional. Sob essa ótica, uma vitória de Mamdani representaria o amadurecimento de um setor que passou a apostar estrategicamente nas eleições com o fim do movimento. Ao mesmo tempo, reforçaria que a desigualdade econômica – eixo central do Occupy – continua moldando a política nova-iorquina.

