“Marcelino”, publicado pela Ímã Editorial (2019), é versão definitiva do romance que Godofredo De Oliveira Neto vem escrevendo há 20 anos, desde a primeira edição pela editora Nova Fronteira (2000), passando pela segunda, da Imago (2008). Nesse percurso, o livro foi semifinalista dos prêmios Portugal Telecom (atual Oceanos) e Zafffari-Bourbon. Leiam a entrevista com o autor.
O que significa estar escrevendo “Marcelino” há 20 anos?
R: Quando dei partida à escrita de Marcelino, o fiz com o desejo claro de tentar o que chamo estilisticamente de ‘grandes narrativas’. Diferente dos meus outros livros, do ponto de vista estético, mas uma obra que levasse em consideração toda a história da ficção brasileira desde o século XIX. Objetivo pretensioso, claro, mas é desse jeito que a gente entra em campo no jogo. Senão nem é bom começar.
O que mudou em 20 anos, tempo de ‘maturação’ de “Marcelino”?
R: Mudou que agora eu tive levar em consideração uma nova realidade no processo de criação: a presença exuberante do leitor via redes sociais, essa troca colossal entre escritor, leitor e editor. A obra não seria mais apenas minha. Machado (de Assis) já antecipava isso, mas com ele era apenas uma astúcia narrativa.
Como se deu o processo criativo de “Marcelino” em suas várias edições?
R: Na primeira edição deixei o pensamento e a história irem se moldando e saindo no papel sem muita preocupação. Esse foi o método para dar forma a uma história longa, embasada em centenas de horas de escrita e informações colhidas junto a testemunhas, livros, documentos, fichas, arquivos, viagens aos lugares citados na obra. Se não me permitisse ser livre, acabaria criando um documento histórico, não literatura. Uma vez publicado, entraram no jogo sugestões de leitores, correções e até indignações – em alguns casos. Fui reunindo e avaliando essas falas dos leitores. Alterei então algumas passagens sem nunca perder de vista o texto original.
Algumas formas de linguagem foram alteradas ao longo do tempo?
R: Ao analisar o universo lexical da literatura brasileira desde os anos 80, de grande densidade e qualidade, mas com um universo relativamente reduzido de vocábulos, me debrucei sobre a ideia de alargamento vocabular visando nuançar e matizar sentimentos e decisões dos personagens. O conflito interno de Marcelino entre o sagrado e o profano, entre razão e emoção, exigia isso. Como é sabido, mexeu na forma, mexeu no conteúdo. Foi saindo a segunda versão do livro. Mário de Andrade alterou mais profundamente que eu várias edições da sua obra. Clarice recorreu a textos já escritos e de gêneros diferentes para a composição de vários dos seus livros. Autran Dourado escreveu versão totalmente nova de um dos seus romances.
Pode citar um exemplo de alteração no perfil do personagem “Marcelino”?
R: Na edição atual, há uma cena que foi escrita há vinte anos mas que ficou fora das duas edições anteriores. Nela, Marcelino, já no Rio de Janeiro, premido pela dúvida, com medo dos seus próprios desejos, tem uma atitude incompatível com sua natureza bondosa. O personagem “bonzinho” é empurrado para a maldade em certos momentos e o desfecho final é por aí. Houve ainda uma edição prévia desta definitiva, publicada em Portugal, na Feira de Óbidos em 2018, também pelo braço europeu da Ímã editorial.
Qual a atualidade do Marcelino em 2020?
R: A presença do nazismo no livro e no Brasil de hoje, a volta de um regionalismo que sucede a globalização enfraquecida, a síntese dos movimentos romântico, realista, modernista e do pós-guerra, o racismo, o preconceito e a formação da nação brasileira – todos esses temas são coadjuvantes na história do livro. Marcelino é cafuzo, de pai negro e mãe indígena; seu melhor amigo e conselheiro é negro, ex-revoltoso da Guerra do Contestado. Um novo Cruz e Sousa dos mares.
Está escrevendo outro livro?
Sim, com estilo contemporâneo, passado nos adias atuais. Devo terminá-lo no meio do ano.