Um artista curioso

O romance Cara Marfiza, vencedor do 1.º Edital de Publicação de Livros para Estreantes da Cidade de São Paulo, narra a história de uma mulher de mais de 70 anos que recebe um telefonema de sua irmã, Marfiza, com quem não fala há décadas, pedindo para que as pinte em um quadro antes de morrerem. Em dúvida sobre aceitar ou não o inesperado pedido, a narradora recupera e cruza histórias do presente e do passado: o difícil convívio familiar, a vida pobre no bairro da Vila, filigranas da relação entre irmãs – na maioria das vezes, matizada de amor e ódio. Através de seus ricos personagens e de uma narrativa fragmentada e poética, Cara Marfiza, desvela aos poucos um panorama doloroso e complexo da existência humana.

 

Você é escritor e ator. Como uma atividade ajuda a outra – se é que ajuda?

R: Gosto de pensar a mim como um artista curioso. A curiosidade, eu entendo, move as coisas pra cá e pra lá sem que possamos, ao certo, ver os percursos. Ter estudado literatura foi fundamental para minha formação de ator, me deu pistas para dimensões mais complexas dos personagens por exemplo. Atuar, o que gosto de pensar como uma prática de alteridade, me faz ampliar o campo dos afetos experienciados. Por isso vou juntando tudo pra cozinhar junto e engrossar o caldo.

 

“Cara Marfiza,” conta a história de duas mulheres já mais velhas. Você é um homem jovem. Como concebeu estas personagens?

R: Eu fui criado no interior e numa estrutura totalmente matriarcal. As mulheres da minha família me deram muitas mais referências para a vida do que os homens. Desde criança sempre gostei de observar as conversas das minhas tias, avós, e essas histórias ficaram gravadas em mim. Quando comecei a escrever “Cara Marfiza,” fui retomando memórias e brincando com elas até encontrar uma voz para a narradora que me soasse familiar. A partir de então, segui me deixando levar por essas vozes como se pudesse encontrá-las na sala de casa para um chá.

 

O lançamento de “Cara Marfiza,” no Cemitério de Automóveis (SP) teve leitura dramatizada de trechos do livro. Planeja levá-lo ao palco ou à tela?

R: O Cemitério é um espaço importantíssimo para mim e para o teatro brasiliero. Eu fiz diversas peças lá e trabalhei com muitos artistas que admiro, por isso foi maravilhoso ter feito o lançamento lá junto com minhas parceiras Elisa Volpatto e Vanessa Bruno. Ao escutar a leitura feita por elas, ficou reforçada  a minha impressão de que “Cara Marfiza,” tem muito potencial para ser deslocada para o teatro e, principalmente, para o cinema. Mas ainda não tenho nada planejado. Ficarei aberto para essa possbilidade.

O romance poderia ser classificado como ‘epistolar’ – escritor em forma de cartas, embora não seja constituído apenas em cartas. Como surgiu esse formato?

R: Tenho pensado, desde os contos que já vinha escrevendo antes deste romance, numa literatura polifônica. Gosto de criar narrativas em que seja possível ter mais de um ponto de vista sobre os fatos. Por isso as cartas foram surgindo na escrita. Achei injusto uma das irmãs falar sozinha. As cartas cumprem esse papel de colocar verdades em xeque. Além disso, é fundamental falar sobre minha paixão pelo livro “A Caixa-preta”, de Amós Oz, uma aula sobre o gênero epistolar e que muito me inspirou.

 

Apesar de o teatro predominar em sua vida, você graduou-se em Letras e já disse que gostaria entrar cada vez mais no mundo da literatura. O que está fazendo nesse sentido?

R: Eu fiquei mais de um ano e meio escrevendo todos os dias por pelo menos três horas. Esse foi o exercício que propus para me investigar como escritor. Dele surgiu “Cara Marfiza,”. Essa experiência, além de ter me feito aprender continuamente, me fez perceber a qualidade do prazer possível diante de uma história em construção. Por isso, certamente seguirei engajado na literatura. Neste ano eu fiz parte do Clipe, um curso incrível que a Casa das Rosas, de São Paulo, oferece para formação de autores. Lá, além de ter aulas com escritores já mais experientes, encontrei um grupo de amigas e amigos autores com o qual tenho aprendido muito. Investigando e sempre.

 

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