Ulisses brasileiro

Em sua primeira narrativa longa de ficção, o escritor e músico André Gardel conta a história de um professor de literatura que percorre o rio Amazonas em busca dos rastros da passagem de Ulisses, há 3.200 anos atrás. O protagonista do romance “A viagem de Ulisses pelo rio Amazonas” (Ed. 7Letras) incorpora o herói grego e revive mitos pré-colombianos, ao mesmo tempo em que combate uma quadrilha que destrói a floresta e ataca os povos originários brasileiros. Leiam a entrevista com o autor.

 

Seu livro se destaca pela criatividade e inventividade no tema. De onde surgiu a ideia de transpor “A Odisseia” para o coração da floresta amazônica, combinando-a com elementos da cultura amazonense?

 

R: A ideia de escrever A viagem de Ulisses pelo rio Amazonas me persegue há alguns anos. Sempre achei fantástica a invenção de Dante, na Divina Comédia, de colocar a chama de Ulisses narrando, no oitavo círculo do Inferno, o modo como morrera. Dez anos após a sua volta a Ítaca, o herói reúne os antigos sócios de navegação e parte para uma aventura que nenhum grego jamais viveu: sair do Mediterrâneo pelo Estreito de Gibraltar e virar à esquerda, encontrando um imenso continente no qual não consegue desembarcar, pois um maelstrom engole a ele e a toda a sua tripulação. Concebi, então, que esse espaço geográfico seria o Brasil: ao invés de Ulisses morrer como Dante poetizou, amplio um pouco mais a teia do mito, assim como também fez James Joyce, e imagino que o herói se depara com a exuberância do delta do Amazonas, em pleno século XII a.C. Situação que vai propiciar, dentro do gênero literário que batizei de realismo mítico de aventura, um diálogo fabuloso entre as civilizações micênica e ameríndia.

 

A voz do narrador-protagonista, apesar de literária, é também coloquial e gera bastante empatia. Quanto há de você e de sua própria história neste livro?

 

R: Não me interessava fazer somente um romance mítico-arqueológico, mas, também, pensar a Amazônia como centro cósmico atual do planeta, denunciando as mazelas trágicas que assolam a região. Por isso, resolvi acoplar discurso, tempos, vozes, espaços na minha narrativa. A autoficção foi um dos procedimentos de que lancei mão para viabilizar essa proposta: meu narrador-protagonista é um professor de literatura próximo da aposentadoria, recém descasado, que tem a ideia de fazer “o romance de sua vida” e, com essa finalidade, se dirige para o Norte do Brasil. Ele não é escritor, mas um homem comum em crise, apesar da cultura literária que possui, que vai perseguir a sua ideia como uma salvação à falta de sentido da vida em que se encontra. Então, a empatia que você apontou, advém, creio, de o leitor descobrir a mesma Amazônia que o personagem, que se lança, inteiramente despreparado, nas experiências mais insólitas e inesperadas.

 

Dizem que todo escritor ou roteirista que deseje se destacar em sua área de atuação deve, necessariamente, conhecer e estudar os mitos gregos. É verdade? Por que?

 

R: Os mitos gregos são a base imaginária de nossa civilização. Lá se encontra a fonte da literatura ocidental, da psicanálise, da filosofia etc. E é sempre bom e produtivo mergulhar em nossas origens para repensar o presente. Contudo, o escritor das Américas, especialmente o brasileiro, tem disponível, bem à sua frente, um manancial tão rico e amplo quanto o grego para explorar, já que milhares de línguas, nações, povos, etnias ameríndias floresceram – e, infelizmente, muitas foram dizimadas – nesse espaço geopolítico que hoje chamamos de Brasil. Junte-se a isso o imenso material mítico afrodiaspórico para cá trazido – a partir da escravidão, a pior mácula de nossa formação – e as múltiplas mitologias dos povos que configuram o nosso caldeamento etnocultural: judaico-cristã, oriental, muçulmana etc. Por isso, na A viagem de Ulisses pelo rio Amazonas, traços materiais e imaginários de culturas diversificadas emergem, se entrelaçam, se dispersam, como nas relações, visíveis e invisíveis, entre os seres da floresta.

 

O livro também mostra sua intimidade com a cultura e o modo de vida na Amazônia: bichos, plantas, cheiros, costumes, sabores, o contato com povos originários. Como adquiriu esse conhecimento?

 

R: Basicamente pesquisando, estudando, me debruçando sobre material bibliográfico, audiovisual, informativo de procedência variada. Nunca fui à Amazônia em minha vida adulta, somente duas vezes, de modo rápido e esporádico, durante a minha infância e adolescência. Acredito que minha capacidade de fabulação também me ajudou muito a formular o universo sensório amazônico que emerge do romance.

 

Além de escritor, você é também professor e músico. Como se divide entre essas três atividades? Qual delas tem importância central em sua vida e por quê?

 

R: Olha, até hoje não sei direito como consigo conciliar tudo isso. Trabalho muito, a verdade é essa. Mas percebo que tenho períodos em que me dedico mais a uma coisa do que à outra – à exceção, é claro, da carreira de professor universitário, que exige constância nos dois semestres do ano. Penso que, se há uma importância central, é a de escritor, pois comecei tudo como poeta livresco, ainda bem jovem. Costumo dizer que só consigo adentrar as searas da música, do teatro, das artes porque sou, antes de tudo, poeta e me utilizo do princípio poético da linguagem em qualquer forma em que me expresse.

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