Suã in ‘hell’ de Janeiro

O título No Domínio de Suã remete à busca proustiana do tempo perdido – referência a um dos grandes clássicos da literatura mundial. Mas história narrada por Milton Coutinho, autor dos livros de contos “X, Y, Z” e “As horas velozes” – finalista do Prêmio Jabuti 2002 –, e do romance “Sanzio”, é bem contemporânea e expõe a mais crua realidade brasileira. Leiam a entrevista com o escritor.

 

Seu romance toca em assuntos causadores de polêmica na atualidade – racismo, violência urbana, desigualdade social –, devido a tal polarização promovida pelas redes sociais. Em algum momento preocupou-se com isso?

 

R: Não costumo seguir redes sociais. Acho, porém, que para o escritor a abordagem dessas questões, mais do que um engajamento, representa uma forma de tentar interpretar o Brasil, porque é no nosso país que esses temas se encontram hoje particularmente em evidência.

De qualquer forma, sempre é importante dizer que a literatura não tem obrigação alguma de tratar temas sociais. Cada escritor fala da realidade a partir de suas próprias questões, de suas próprias ficções.

 

O protagonista se expressa em primeira pessoa na primeira e terceira partes do livro, quando se encontra no Brasil. A segunda parte, quando está em exílio na Europa, se dá em terceira pessoa. Existe algum simbolismo por trás dessa divisão?

 

R: Sim, há o simbolismo mais imediato de que o protagonista só pode ser narrador de sua trajetória em primeira pessoa quando se encontra no Brasil, ou seja, onde está enraizado. No exílio perde essa força que lhe permite falar em primeira pessoa e tem de “ceder” a condução do relato a um narrador onisciente em terceira pessoa.

Mas essa alternância entre primeira e terceira pessoas, permite também passar ao leitor pontos de vista diferentes, cuja função é a de ampliar os horizontes do texto e da própria história.

 

A trama é suspensa em alguns momentos para dar lugar a breves ensaios, principalmente sobre arte, literatura e cultura. Esse formato surgiu naturalmente ou foi planejado?

 

R: Sempre procurei mesclar formatos diferentes de texto em meus livros. Não apenas ensaio e ficção. O romance contém “notícias de jornal” e sonetos; incorpora citações e trocadilhos à trama ativa do enredo. Há também alternância de gêneros, passando-se da autoficção à paródia de outros modelos canônicos de narrativa. E haveria que mencionar ainda a utilização de mapas e fotografias.

Enfim, para mim, o grande desafio é integrar todo esse material diverso no corpo do romance. E só quem pode dizer se de fato consegui é o leitor.

 

O crítico, professor e escritor brasileiro Victor Giudice (1934-1997) e o psicananalista e escritor português Antonio Vieira são pessoas da vida real que se tornam personagens em sua obra. Por que incluí-los?

 

R: São duas pessoas importantes para mim, tanto pela amizade quanto pelo que me ensinaram ao longo da vida, com seus livros e com a sua conversação. Pouco depois do falecimento do Giudice, conheci o Vieira, e não posso deixar de ver nisso uma espécie de passagem de bastão.

Incluí-los no romance – transformando-os em personagens e dando tratamento ficcional às suas próprias trajetórias – foi a forma que encontrei de homenageá-los e marcar a importância que têm para mim.

 

Você mora fora do Brasil há muitos anos e não tem planos de voltar. Como se sente em relação ao seu país hoje?

 

R: Viver fora do próprio país para o escritor é um fator que tem vantagens e desvantagens. Por um lado, enfraquece o vínculo com o dia-a-dia da sociedade brasileira, mas por outro permite a visão distanciada, que propicia um olhar mais independente.

Considero o Brasil um verdadeiro enigma. E meus atuais projetos literários são, em parte, uma tentativa de decifrá-lo.

 

Você foi finalista do Jabuti com seu livro anterior, As Horas Velozes (2001). Quais são seus planos como escritor?

 

R: Tenho me aproximado cada vez mais do formato do romance. Considero que seja o que mais me possibilita desenvolver os temas que me interessam. No momento, trabalho no segundo romance do que chamo de Trilogia Brasileira, cujo primeiro volume é justamente No Domínio de Suã.

São três romances independentes, mas com um fio condutor literário. E que tratam visceralmente do Brasil, da sua história, da sua sociedade e da sua literatura.

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