Poesia que assume o risco da prosa

Em seu quinto livro de poesias, “Contra todo alegado endurecimento do coração” (7Letras), o poeta e letrista Fernando Abreu nos chama à consciência do momento em que se escreve poesia, assim como a sua antecipação e o depois. O que fazer com o poema que se produziu? Sua escrita é ao mesmo tempo profunda e coloquial, austera e bem humorada ao falar sobre esse tema central e também ao abordar a relação pai e filho (“Keith Richards e seu velho na estrada”), a crítica social (“As crianças de Jah”) ou a beleza fugaz de um momento (“O presente”). Leia a entrevista com o autor.

 

“Contra todo alegado endurecimento do coração” pode ser interpretado como um título político e não apenas poético. Como reage a essa análise?

 

A frase foi pinçada de um poema bem pessoal, e entrou de última hora, em substituição a uma ideia anterior que não me agradava inteiramente. Isso ocorreu de um estalo, uma provável sugestão do inconsciente, o que me deixou finalmente em paz com o título do livro, que sintetiza com exatidão o espírito dos poemas. Só com a reação das pessoas é que fui me dar conta do recado político contido nele, reafirmando o velho slogan da contracultura: “o que é pessoal é político”.

 

Esse é o seu quinto livro de poesia. Nos anteriores, podíamos encontrar versos de forma fixa e definida, mas no seu trabalho atual, você prima pelo verso livre. Essa mudança foi proposital?

 

Esse livro aprofunda e acelera a experiência com a linguagem expressa no anterior, Manual de Pintura Rupestre, despindo o texto de qualquer recurso da chamada “linguagem poética”, no sentido jackobsoniano da coisa. É uma poesia que assume o risco da prosa, que insiste em dizer coisas, quando o dogma em vigor é aquele denunciado com muita verve pelo italiano Alfonso Berardinelli: tudo é possível em poesia, menos dizer alguma coisa. Me insurjo contra isso.

 

Você cita os músicos Keith Richards e Bob Dylan em poemas, e também é parceiro de Zeca Baleiro em algumas letras. Qual a dimensão da Música na sua composição poética? Quais outros músicos o influenciaram na poesia?

 

De Moreira da Silva aos maranhenses Chico Maranhão e Josias Sobrinho, passando evidentemente por Bob Dylan e Bob Marley, a lista é imensa. Cresci ouvindo música popular no rádio, isso é parte essencial do meu universo. Sou filho da cultura de massas, não sou um poeta erudito nem um acadêmico, embora me interesse e acompanhe de perto o debate sobre os caminhos da poesia. Estou entre os que acham que a música popular é um grande suporte para a poesia. No Brasil, pelo menos, isso acontece com uma força inegável.

 

No poema “Meu tempo”, você escreve: “Sou, como se diz, / um poeta do meu tempo”. Na sua opinião, qual a função social do poeta no nosso cotidiano?

 

Longe de ser uma inutilidade ou um “inutensílio”, como queria Paulo Leminski, a poesia compõe o patrimônio da civilização. Não existe comunidade humana sem poesia, mesmo quando não há escrita. Em nosso contexto de sociedade complexa pós-industrial, a poesia funciona como descondicionador de nossa sensibilidade, banalizada pela competição suicida da máquina capitalista.

 

Alguns poemas de “Contra todo alegado endurecimento do coração” tratam sobre o próprio fazer poético e a poesia em si. Quais conselhos daria a um novo poeta?

 

Nunca deixe de ouvir seu coração, não faça concessões a tendências por mais sucesso que estejam fazendo. Se mantenha informado, seja exigente, não seja conformista. Mas também reserve espaço para um pouco de ignorância. Sem isso não rola o maravilhamento e a surpresa de que tanto precisamos.

 

 

– José Fontenele

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