O operário brasileiro que desafiou Moscou e o PCB

Antonio Bernardo Canellas foi o único a questionar as decisões do Partido Comunista na II Internacional Comunista de 1920, em Moscou. Como consequência, foi expulso do PCB. A saga de Canellas, única na história do Comunismo no país, é recontada com êxito nas páginas de Um cadáver ao sol, de Iza Salles. Aproveitamos o relançamento do livro em e-book para entrevistar a escritora.

 

Quando e em que circunstâncias você começou a se interessar por política e se identificar com a esquerda?

 

O interesse pela política nasce da sensibilidade diante das injustiças do mundo, sobretudo a pobreza e suas consequências. Qual a saída? A pergunta me encaminhou, muito naturalmente, para a esquerda porque oferecia as melhores respostas. No segundo capítulo de Um Cadáver ao Sol enumero os muitos teóricos que transformaram o século XIX no mais rico em teorias para explicar e mudar o mundo. Todas de esquerda.

 

De onde surgiu a ideia de escrever a história de Canellas?

 

 

Das minhas dúvidas e da minha procura por respostas. Marx ensinou a duvidar sempre de tudo, mas os marxistas esqueceram esse ensinamento. Morar em Madri durante a democratização espanhola nos anos 70 me levou aos anarquistas, lá descobri que desde o século XIX eles haviam previsto o fracasso do Comunismo, caso ele chegasse ao poder. Comecei a investigar o assunto. Eu estava morando na Itália quando me caiu do céu os relatórios sobre o “caso Canellas”, e vi que era um prato cheio. Estava de volta ao Brasil quando caiu o muro de Berlim em 1989, confirmando as previsões anarquistas e me animando a continuar as pesquisas.

 

Por que você associa o incidente em que ele se envolveu em Moscou aos desvios do Comunismo no século XX?

 

Lendo aquelas páginas, descobri que ele não tinha sido expulso do PCB e da Internacional por crime de opinião no congresso da Internacional Comunista, mas porque havia ousado questionar o poder centralizador e domínio dos bolcheviques sobre os demais partidos. Sua expulsão, em 1924, foi apenas o prelúdio de um horror que logo se estenderia a todos os partidos comunistas. Mostro no livro que os mesmos que julgaram Canellas em Moscou e no Brasil também foram expulsos como ele. Mas boa parte da esquerda, inclusive o PCB, preferiu não ver nada.

 

Você foi presa na época da ditadura. Quais lembranças guarda dessa experiência?

 

Acho que a imagem mais chocante foi ver a chegada, na Torre das Donzelas, em São Paulo, em 1970, de uma operária com um filho de meses nos braços. Durante todo o interrogatório ela o conservara junto a si, impedindo que os torturadores o tocassem. Queriam saber de seu marido. Sua determinação foi tamanha que os torturadores recuaram. Assim, ela foi para a prisão com o bebê nos braços. Quando conseguimos conquistar sua confiança e pegar o bebê, ela quase desfaleceu de cansaço, os braços dormentes. Os advogados dos presos políticos tiveram brilhante papel na sua libertação e na nossa. As boas lembranças vêm do apoio silencioso por onde passávamos: de soldados, enfermeiros, médicos, companheiras de prisão. Um olhar, um sorriso, pouca coisa, mas suficientes.

 

Você trabalhou no Pasquim com Millôr Fernandes, Ziraldo, Henfil, Jaguar, Ivan Lessa e outras feras. Como era a convivência com esses jornalistas?

 

Quando entrei no Pasquim, Millôr Fernandes era o diretor do jornal. Na conversa que tivemos, por lealdade, contei que havia acabado de sair da prisão, que tinha sido acusada de ser da Vanguarda Popular Revolucionária etc. Ele ouviu tudo em silêncio e concluiu: “Iza, nós somos um jornal liberal, aqui tem gente de todos os credos, mas você acaba de preencher todas as vagas de comunista. Não entra mais um”. Como resistir à piada? Entrei no Pasquim. Meus preferidos eram Millôr, Ivan Lessa, Henfil, Jaguar e Paulo Francis.

 

Atualmente qual é sua posição política? O que espera do atual governo brasileiro?

 

Sou democrata. Sei que a democracia é imperfeita, mas não existe ainda nada melhor que ela. Aprendi isso com Norberto Bobbio, o filósofo de Qual Socialismo? livro que traduzi para o português. Espero que o atual governo respeite as regras do jogo democrático e apoie a Lava Jato, a coisa mais importante no país nos últimos anos. Quando lancei meu livro, em 2005, ele fez muito sucesso entre os anarquistas e numa divertida palestra num sindicato um menino louro, bonito, me perguntou se eu era anarquista, todos eles perguntam. Respondi que não, não era, mas me considerava libertária. Sou uma democrata libertária. Basta?

 

Conte-nos um pouco sobre seus projetos literários atuais.

 

Tenho uma peça que surgiu das minhas pesquisas para o livro, chamada O Defunto Comunista. Coincidência o cadáver no livro e o defunto na peça. Resumo da peça: no velório de um ex-dirigente do PCB, seus amigos e inimigos discutem o passado.  Já teve uma primeira leitura pública, no Midrash, dirigida por Jitman Vibranovsky, e uma segunda, privada, na casa de Tonico Pereira, dirigida por Bruce Gomlevsky. Acho que é uma boa peça, pelo menos essa é a opinião de quem entende do assunto como Nelson Xavier, Othon Bastos, Juca de Oliveira, Suzana Faini, Otávio Augusto, Rogério Fróes. Fora disso, gostaria de publicar mais um livro, mas cadê tempo? Depois de uma certa idade ele fica muito curto. Por isso paro por aqui.

 

 

– Valéria Martins

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