Uma rainha é ceifada do trono por sua infertilidade, mas vai atrás do que é seu por direito. Um morador de rua apaixonado busca seu amor e o encontra de um jeito inesperado. Um menino abobado é obrigado a dar cabo da própria avó. Uma mulher dá à luz sua primeira menina, uma filha, na prisão. O universo sobre o qual escreve Maria Fernanda Maglio é o dos desvalidos, oprimidos, esquecidos. Mas, antes de ser panfletários, seus contos arrebatam pela literatura. Leia a entrevista com a escritora.
“Enfim, imperatriz” é seu primeiro livro publicado e já ganhou o Jabuti. Desde quando você escreve?
R: Minha história com a escrita é relativamente recente. Eu comecei a escrever com 33 anos, em 2013. Sempre tive uma relação muito próxima com a literatura, mas como leitora. Não sei exatamente porque eu comecei a escrever, costumo dizer que a literatura não foi algo que brotou em mim, ou foi nascendo devagar. A literatura arrebentou. Por isso mesmo não é possível retorno. Eu demorei para começar a escrever, mas quando comecei, senti que algo definitivo havia acontecido. Quando comecei a escrever literatura, eu já era mãe. Minha filha mais velha tinha três anos e o mais novo um. Acredito que a maternidade tenha sido, dentre outras coisas, o gatilho para a escrita.
Como é o dia a dia no trabalho como defensora pública? Como o trabalho influencia sua literatura?
R: Sou defensora pública desde 2007 e trabalho fazendo a defesa de pessoas pobres que estão cumprindo pena. Meu trabalho influencia diretamente na minha escrita. A temática social, muito presente na minha literatura, decorre em grande parte da minha atuação profissional. Eu, mulher branca e de classe média, dificilmente teria contato com uma realidade tão dura, injusta, racista, violenta, não fosse meu trabalho como defensora pública criminal.
O conto que dá título ao livro se refere a um episódio desconhecido ou esquecido, o rompimento do casamento da princesa Soraya (1932-2001) com Mohammad Reza Pahlavi (1919-1980), Xá da Pérsia, por conta da infertilidade da esposa. Posteriormente ele se casou com Farah Diba (1938-) com quem teve quatro filhos. Como tomou conhecimento dessa história e por que ela lhe inspirou um conto – entre os melhores do livro?
R: Escrevi o conto “Enfim, imperatriz” na oficina de criação literária da Noemi Jaffe (curso que frequento até hoje). Os alunos deveriam escrever um conto baseado em algum fato histórico, em que existisse uma relação de inveja entre os personagens e, a partir daí, ficcionar, criar uma história. Meu pai é uma pessoa bastante culta e eu pedi para que ele me desse exemplos de acontecimentos marcados por esse sentimento de inveja. Ele me deu um monte, desde a bíblia, até episódios recentes, da música, da literatura, do campo político. Então pedi para que ele me desse uma história de inveja entre duas mulheres e ele me contou da Soraya e da Farah Diba. Nunca tinha ouvido a história e fiquei encantada. Fui pesquisar, vi fotos de ambas, da cerimônia de casamento da Soraya com o Xá. Não encontrei nada que sugerisse que havia um sentimento de inveja. Pelo contrário, li um trecho da biografia da Soraya em que ela dizia que não nutria nenhum sentimento ruim pelo ex marido e nem pela nova mulher. Não acreditei. Nesse contexto, o sentimento mesquinho (ciúme, raiva, inveja) é tão humano que seria impossível que ela não sentisse. Ela foi preterida pela outra, o marido a deixou porque ela não podia ter filhos. A partir dessa percepção, de que Soraya sentia sim raiva e inveja, inventei uma história que acabou enveredando pelo realismo fantástico.
O Jabuti trouxe no bojo convites para participar de feiras de livros e eventos literários. Como concilia sua nova rotina com a vida comum: marido, dois filhos pequenos e a defensoria pública?
R: Na verdade é impossível conciliar tudo e fazer tudo bem feito. Estou sempre devendo, sentindo que poderia fazer mais e melhor, em todas os aspectos da vida: literatura, família, trabalho. Mas não posso cair nessa armadilha da culpa (e é claro que muitas vezes caio), senão acabo não fazendo nada. Então vou escrevendo, trabalhando, vivendo com minha família, participando de um ou outro evento literário. Minha única expectativa é que eu possa viver muito, morrer bem velha e lúcida (quem é que não quer?) para que eu tenha tempo de escrever bastante.
Em 2019 ainda será publicado outro livro de sua autoria, o volume de poesias “179. Resistência”. De que tratam as poesias? Por que decidiu publicá-las?
R: Eu não me considero poeta, acho que minha relação com a literatura é mais como prosadora, gosto de contar histórias. Mas minha prosa tem uma preocupação quase excessiva com linguagem, gosto das palavras, das construções, da estranheza que a linguagem pode provocar. Acho que esse trabalho cuidadoso com a linguagem na prosa, acabou tendo por efeito a escrita de poesia. O título do livro é uma referência a um verbete do dicionário analógico, que uso bastante para escrever. Tem um sentido político inegável, claro. É tempo de resistir à barbárie, ao fascismo, aos retrocessos. Mas não só. Resistência também no sentido de resistir à vida, resistir pela vida, resistir à loucura, resistir apesar da loucura, resistir à maternidade e pela maternidade. Resistência no sentido de sobreviver.