Hamlet do Sertão Paulista

A História da colonização do Oeste paulista, escrita a ferro, fogo e sangue, é recontada por Fred Di Giacomo em uma narrativa ágil e bem humorada, que remete aos westerns de Sérgio Leone, à violência pastiche de Tarantino e ainda ao realismo mágico de García Marquez.

Conterrâneo dos personagens verídicos que desfilam por este livro, o autor nos apresenta a viúva Maria Capa Negra, que foi, de fato, ama de leite de Dom Pedro II; a pioneira Maria Chica, que realmente existiu e teve uma filha chamada Rita – nome da tia de Fred “que acendeu o rastilho de pólvora desta história”. Rita busca vingar a memória de seu pai, Modesto Moreira, único fazendeiro negro livre da cidade fictícia de Desamparo, que perdeu tudo ao ser acusado, injustamente, de ter violentado uma índia kaingang.

Tudo isso confere a ao romance de Fred Di Giacomo um clima de Hamlet do sertão. Desamparo é um romance histórico inventivo, fluente e cativante, bem amparado em pesquisa acurada que incluiu visitas a museus, audição de entrevistas raras com pioneiros do Oeste Paulista, pesquisa iconográfica, leitura de jornais e livros da época e conversa com historiadores. Entretenimento e informação cultural de alta qualidade.
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“Desamparo” é um romance histórico que mescla ficção e pesquisa jornalística e usa o lirismo do realismo mágico e a violência do western como linguagens. Como chegou a essa combinação tão original?

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Meus pais são professores de história de ensino médio, daqueles que sempre acreditaram que a educação pública seria a revolução pacífica que tiraria o Brasil do atraso. Isso com certeza influenciou minha curiosidade pela história da minha própria cidade, Penápolis, uma história pouco contada, que a gente não aprendia no colégio. Sabemos muito pouco sobre os lugares onde vivemos, né? Especialmente os bairros, as cidades pequenas, as regiões fora do centro. A vontade de contar essa história veio de uma situação que o médico-escritor Drauzio Varella resumiu como: “Se você não é um gênio como Tolstói e Dostoiévski que podem converter qualquer banalidade em um grande livro, escreva sobre algo que só você poderia contar”.  Não precisei de muito esforço para perceber que não era gênio, então pensei “o que só eu poderia contar”? Bom, minha cidade é pequena, distante 500 km da capital, não é rica; se eu não registrar seus causos quem o fará? A pesquisa jornalística foi a ferramenta natural para que eu apurasse esses fatos, já que trabalho como jornalista há mais de 14 anos. Com a  pesquisa e o argumento do livro em mãos, percebi que as superstições e crenças caipiras, indígenas e africanas que faziam parte daquele universo – e nossa forma de narrar os fatos misturando consciente e subconsciente – lembravam as narrativas de livros do chamado “realismo mágico”, escritos por gente como Juan Rulfo, García Márquez e Jorge Luís Borges. Paralelo a isso, quando precisei narrar as inúmeras cenas de violência e tiroteios que aconteciam durante a expansão da estrada de ferro, as referências que despontava eram os westerns de Sergio Leone, os de Tarantino e o bangue-bangue barroco do filme “Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”.

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O romance começa pelo final com um rápido prólogo. Novamente, como se deu essa inversão na narrativa? Foi algo pensado ou resultou de uma revisão final de sua parte?

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Esse começo foi pensado e foi a primeira coisa que escrevi de fato. Durante as revisões e edições (o livro teve 25% de seu conteúdo limado nesse processo), eu acrescentei outros flashbacks e brincadeiras narrativas (a identidade da narradora, por exemplo, é revelada apenas no final da primeira parte), mas a ideia de começar pelo fim veio na primeira versão e ficou. Ele começa com a morte do antagonista Coronel Manoel Antero dos Santos que seria o personagem principal do livro, mas foi perdendo espaço para Rita Telma, verdadeira protagonista de “Desamparo”. Com certeza existe alguma influência aí de “Memórias Póstumas”, García Márquez e os roteiros não-lineares do cinema dos anos 90.

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O livro tem personagens muito marcantes, especialmente os que fazem parte do clã dos Capa Negra. Esse clã realmente existiu? Como foi a pesquisa histórica para a confecção do livro?

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Os Capa Negra são os principais personagens da primeira parte do livro, que ambienta o cenário de “Desamparo” e são baseados numa família influente da minha cidade e da região onde me criei no oeste paulista. Mesmo em reportagens e livros históricos sobre eles, existem informações difíceis de comprovar, como a lenda de que sua matriarca, a viúva Maria Capa Negra, fora ama de leite de Dom Pedro II, e por isso teria ganho suas terras e a mantilha negra que batizou sua família.
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Para compor esse clã, nomes e sobrenomes foram trocados e alguns personagens históricos foram fundidos em um único personagem fictício, mas me baseei numa pesquisa que começou anos antes de escrever o livro e que incluiu visitas aos museus da minha região (Histórico, Folclórico, Primeira Casa de Penápolis, Biblioteca Municipal), audição de entrevistas raras com os pioneiros da cidade, pesquisa iconográfica, leitura de jornais e livros da época e conversa com historiadores, parentes e amigos que moram na região há tempos.

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Ainda falando dos personagens, como surgiu a protagonista Rita? Ela também é uma personagem histórica?

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Rita é uma personagem 95% fictícia. 95% porque sua mãe, a pioneira Maria Chica, realmente existiu e teve uma filha chamada Rita, sobre quem nada se sabe. O resto é invenção e foi crescendo enquanto eu escrevia o livro que inicialmente seria protagonizado pelo Coronel Manoel, que me interessava por ser um sujeito mediano que sempre quis fazer algo de notável, que buscava notoriedade e “grandes ações” em meio a um ambiente medíocre. Ele busca algo comum no ideário masculino que é esse sucesso digno de capa de revista, a realização como “empreendedor”, realizador ou artista. Confessei nele muito da pretensão e vaidade de um escritor. É um sujeitinho extremamente humano
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Com a pesquisa, as histórias de viúvas pioneiras – de gente comum – iam pulando na minha cara e Rita foi ganhando vida própria e dominando o livro buscando vingar a imagem de seu pai Modesto Moreira, único fazendeiro negro livre de Desamparo e que perdeu tudo ao ser acusado, injustamente, de ter violentado uma índia kaingang. Essa história, que também é baseada num caso real, acabou ganhando um ar de “Hamlet do sertão”, com o espectro de Modesto atormentando Rita, o que me divertiu muitíssimo e deu uma espinha dorsal mais forte para o romance que passou a correr paralela com a história da cidade e da colonização do oeste paulista.
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Você está morando em Berlim, pela segunda vez, há um ano. Como essa mudança impactou sua vida de escritor? 

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A primeira vez que morei em Berlim (entre 2013-2014) foi importantíssima porque a distância de casa, a necessidade de explicar o Brasil para os amigos estrangeiros, me fez procurar uma “narrativa nacional” e, também, me fez sentir muito brasileiro, por contraste com os alemães. Mais do que brasileiro, essa experiência me fez sentir caipira, me fez pensar na minha cidade, na minha origem, querer registrar uma cidade-útero que só existe em mim e que acabaria sendo “Desamparo”.
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Agora me mudei para Berlim novamente porque minha companheira ganhou uma bolsa de estudos alemã. O lado negativo na minha vida de escritor foi que me deixou distante do Brasil pouco depois de eu ter lançado o “Desamparo”, o que atrapalhou um tanto a divulgação do livro, a participação em eventos, etc. Por outro lado, pude participar da Printemps Littéraire Brésilien falando do meu livro nas universidades de Sorbonne, Nanterre e Lille. Também fizemos um lançamento com bate-papo em Berlim.

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Além de escritor, você também é músico. Como as duas artes se manifestam em sua vida? Uma ajuda a outra?

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Eu gosto de contar histórias em diferentes plataformas, fazer arte narrativa; seja através de uma canção, seja através de um jogo. Acho que, no meu caso, a música é mais emocional e a escrita mais racional. Como gosto de tocar em bandas, a música acaba sendo uma arte coletiva na qual, em um show, você tem um contato imediato com o público. Escrever – reza o clichê – é uma arte solitária. Meus dois últimos trabalhos (o romance “Desamparo” e o disco “América”, com a banda Bedibê) acabaram se entrelaçando e dialogando, nutridos pela minha pesquisa sobre o interior do Brasil, minhas memórias e minhas raízes. Tanto que a música que encerra o disco “América” também chama-se “Desamparo” e o clipe de “Canção do Pó” usa imagens antigas do oeste paulista que descobri em minha pesquisa para o romance. Ambos se alojam na minha proposta de, nas palavras do escritor finalista do Jabuti Krishna Monteiro, “contar histórias de um Brasil profundo, com uma dimensão épica” e que não se prendam apenas “no universo das grandes metrópoles e em problemas individuais”.

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– Valéria Martins

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