“O Diabo, ele mesmo, que brilhou nas páginas de Goethe, Mann, Valéry, Bulgakov, Benet, Rosa, Mateus, João e Tiago, entre mais incontáveis profetas e poetas, desembarca no assento de passageiro de um fusca carioca, onde se inicia um embate metafísico que arrasta o leitor (…)”. Este trecho da ‘orelha’ de “Fausto Tropical”, redigido pelo poeta e jornalista Pedro Bial, dá o mote do novo romance do também jornalista Sidney Garambone. Apesar de cobrir esporte na televisão, o escritor Garambone elegeu como tema de seu livro um enredo clássico da literatura universal – o encontro entre um mortal e o Diabo – atualizando-o com referências eruditas e populares, criando um texto ágil, divertido e atraente, pleno de literariedade e profundidade, fazendo jus aos assuntos abordados: verdades e mentiras, vida e morte.
“Fausto tropical” tem o mesmo protagonista de “Eu, Deus”, o escritor Victor Vaz. Se no primeiro livro ele se sentia um deus, no atual ele dialoga com o diabo. A que se deve essa exposição de Victor aos dois extremos da existência?
Victor era uma ferramenta de um desejo meu. Eu gostaria de escrever uma trilogia: “Eu, Deus”, “Ele, Diabo” e “Nós, Anjos”. Mas a ideia foi caducando, os anjos não se apresentaram e Victor acabou premiado para passear filosoficamente e de corpo presente por estes extremos. O bom é que não é necessário ler um livro para compreender o outro. São completamente independentes, já sobre Deus e o Diabo não posso dizer o mesmo. As aventuras de Victor ao lado do Diabo mostram muitos caminhos convergentes do Bem e do Mal, a ponto de duvidarmos se o Diabo é o Diabo mesmo, ou alguém tão poderoso quanto o interpretando.
O diabo é um personagem icônico e poderoso na história da Literatura. Quais referências utilizou para construir o discurso dele?
Eu sempre me incomodei com a representação histérica do diabo. Fogo, ódio e exagero me pareciam caricato demais. Assim como Deus não é uma figura extremamente calma e compreensiva no Antigo Testamento, o Diabo também poderia encarnar uma personalidade mais reflexiva, pensadora e questionadora. O cinema me ajudou muito a compor o meu personagem. A frieza de Al Pacino em “Advogado do Diabo”, o cinismo intelectual de Robert de Niro em “Coração Satânico” e a profundidade mística do ocultista Constantine, vivido por Keanu Reeves, mas que originalmente é um personagem dos quadrinhos. Procurei referências também no modus operandi de velhos professores universitários, com pós-doutorado nas costas e um jeito didático de lidar com jovens alunos ainda ignorantes na matéria.
Victor Vaz entende o diabo como um ser erudito, por vezes melancólico, não-vingativo, mas “oprimido pela própria história”, por ser sempre o motivo da barbárie alheia. Você acredita no diabo? Acha que ele seria assim mesmo?
Eu acredito que o diabo seja um somatório das crenças e criações humanas. Se ele existisse, o imaginaria com alguém pretensioso que levou um tombo gigante e procura entender até hoje porque não é compreendido. Vejo o diabo também como um viajante do tempo que aparece aqui e acolá conforme nossos humores.
Em seu livro, o diabo e Victor Vaz compartilham certo sofrimento pela própria natureza. Na sua opinião, qual o ensinamento do homem ao diabo?
O principal ensinamento do homem ao diabo é a simplicidade. A sapiência de saber que, às vezes, um copo caindo no chão e quebrando é apenas um copo caindo no chão e quebrando. O diabo teria uma necessidade atávica e visceral de tudo compreender e explicar. O homem convive tranquilamente com o desconhecido e nem sempre precisa estudá-lo em busca da compreensão. Como se um americano descolado, de boné virado e roupas largas, chegasse para o diabo numa quadra de basquete do subúrbio e apenas o aconselhasse. “Hey, man, relax! And play basketball”
No final de “Fausto tropical”, Victor Vaz encontra uma grande descoberta pessoal e se põe a escrever. Isso significa que ainda o veremos mais uma vez?
Acho que as duas aventuras literárias recentes de Victor Vaz foram muito intensas. Ele me pediu longas férias para poder relaxar um pouco. Deve estar em algum lugar isolado do mundo, tomando vinho sozinho, sem Deus nem o Diabo por perto.
– José Fontenele