Brasil triste

Em seu novo livro, “Memórias de um triste futuro” (Ed. Patuá), o escritor William Soares dos Santos se afasta do lirismo que caracterizou seus trabalhos anteriores e nos leva para uma viagem difícil, mas sempre necessária, aos anos da ditadura civil-militar que governou o Brasil de 1964 a 1985, e que deixou marcas que permanecem até hoje na sociedade brasileira. Leiam a entrevista com o autor.

 

Seu novo livro tem como tema central os anos de chumbo, a ditadura civil-militar que governou o Brasil de 1964 a 1985. Qual a motivação para escrever “Memórias de um triste futuro”?

 

“Memórias de um triste futuro” é um trabalho que foi fruto de muita reflexão e pesquisa sobre alguns movimentos que o Brasil e o mundo já viveram e estão revivendo atualmente. Falo do recrudescimento de ideologias nazifascistas e da existência de pessoas que, por desconhecerem a história, ou por falta de ética, desejarem a volta de governos que se ancorem nessas ideologias ou em correlatas tais como os da Ditadura civil-militar que governou o Brasil entre os anos de 1864 e 1985.

 

Seu livro é um tanto duro nas descrições das violências perpetradas contra personagens. Em algum momento pensou em ‘amenizar as tintas’ a fim de conquistar uma fatia maior do público?

 

Sou um escritor totalmente à margem do sistema, o que implica uma série de questões. O lado negativo é que não consigo ter qualquer retorno financeiro com a literatura. Vivo de meu salário de professor. Nunca vendi o suficiente para receber qualquer quantia em direitos autorais de qualquer editora em que tenha publicado. Na maioria das vezes acontece o contrário: eu compro os livros e distribuo para que pessoas saibam que o trabalho existe. A coisa boa é que isso me dá uma liberdade que eu não teria se estivesse amarrado a uma companhia que esperasse de mim resultados focados em lucro. Por continuar acreditando nas possibilidades humanas da literatura, a minha principal preocupação é em melhorar a minha qualidade como escritor. Acredito que, assim, os leitores apropriados virão ao encontro da obra. A literatura é uma das formas de eu estar no mundo e um dos caminhos que esta existência me oferece para a minha iluminação como ser humano. Nesse sentido, realizar concessões para mudar qualquer uma de minhas obras é algo que não está no meu horizonte.

 

“Eu nunca soube explicar direito o que acontece com um ser humano depois que passa pela tortura (…) É como se roubassem o amor da gente”. Como foi o processo de pesquisa para redação de seu livro? Entrevistou pessoas que foram torturadas durante a ditadura?

 

Fiz uma pesquisa que me levou a muitas histórias do período, histórias de violência e de dor que, pela minha formação humanista, tenho certeza de que precisam ser relembradas para que as barbaridades cometidas naquele período não se repitam mais em nossa história. Foi, antes de tudo, a minha inquietação como ser humano e a minha obrigação de educador e escritor que me levou a um mergulho literário tão difícil ao ponto de eu chorar em muitos momentos em que estava escrevendo. Chorar pela dor do outro que sentia em mim mesmo, pelo momento de terrível incompreensão em que vivemos e pela barbárie que insiste em dominar a humanidade, não obstante a sua longa jornada civilizatória.

 

Seu livro pode ser lido em ordem cronológica ou aleatoriamente, como se fosse um livro de contos. No início, você sugere uma ordem diferente dos capítulos. Apesar de tudo, é classificado como romance. Por que organizou os textos desta forma?

 

Preferi deixar o(a) leitor(a) livre para escolher a forma de lidar com livro, apenas sugerindo uma forma de leitura, evitando delimitar ou impor as que ele(a) poderá vislumbrar. Subversões da forma do romance já foram feitas por escritores do passado. lembro-me, por exemplo, do clássico “O jogo da amarelinha” de Júlio Cortázar.

 

O Brasil é um país de triste futuro em sua opinião? Por quê?

 

Uma pesquisa séria a respeito de como vive parte significante da população brasileira mostrará que ainda sofremos e ainda carregamos as marcas das múltiplas violências perpetradas durante a ditadura. Naquele período surgiram vários grupos que ainda hoje atuam de forma violenta, através de diferentes poderes paralelos ao Estado, sobretudo nas periferias das grandes cidades. E, ao mesmo tempo, muitos indivíduos dentro das próprias instituições estatais flertam com modelos fascistas de governar, nos quais imperam estruturas fechadas de pensamento e a mídia e formas deturpadas de religião são usadas como ferramentas de controle em contextos nos quais o uso da violência impera contra os mais fracos (pobres, negros, periféricos, aqueles que não se configuram em famílias ditas “tradicionais”, etc.) e a vontade de interdição sobre a vida do cidadão continua presente. Obviamente, a ditadura não nasceu em um vácuo. Ela é apenas um aspecto do conservadorismo brasileiro. Voltando mais ao passado, veremos que o Brasil é um país nascido da violência. A máquina de opressão colonial esmagou indígenas, negros e toda a forma de pensamento que não fosse ao encontro de seus propósitos de dominação. Ainda mantemos relações que se espelham na divisão de classes colonial. Enquanto não resolvermos os problemas de nosso passado e não integrarmos todos os cidadãos, verdadeiramente, em um projeto de pátria democrática, seremos sempre uma nação de tristes futuros.

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