As dores do mundo

Os versos de Fernando Boigues em seu livro de estreia “Senhor Dorido & outros poemas” (7Letras) surpreendem pela voz madura e firme, com alta carga poética. O também poeta e crítico literário Carlito Azevedo é o primeiro e reconhecer: “A escolha de um personagem que se repete ao longo do livro tem a vantagem de quebrar o formato mais tradicional (…), impondo uma espécie de trama cheia de elipses, que esboça uma fuga da poesia, uma ampliação dos recursos poéticos. Um namoro do lírico com o épico (…)”. Levados pelo senhor Dorido, sentimos as dores suas e do mundo, suavizadas pela Beleza que só a mais fina poesia é capaz de prover. Leiam a entrevista com o autor.

 

Quando e como surgiu o senhor Dorido?

 

R: Numa das oficinas de Poesia do Carlito Azevedo, na Estação das Letras. Ele lançou um exercício, após ler poemas sobre o senhor Cogito, um personagem que transita pelos poemas de Zibgniew Herbert. O exercício consistia em criar um personagem que pudesse estar em nossos poemas. Isso foi um desafio e então criei o senhor Dorido.

 

Por que o nome Dorido?

 

R: Eu queria um nome que representasse o que escrevo, o que penso e o que vivo e já vivi. Então surgiu o nome Dorido, que vem de Dolorido, que é o que os personagens que participam de meus poemas são: DORIDOS. Acho um nome forte para representar os seres vivos que sofrem e trabalham incansavelmente. Sinto que o senhor Dorido, apesar de às vezes ser solitário, pensativo, crítico e até irônico, é um bom homem.

 

Qual é a maior dificuldade ao escrever poesia? E a maior dádiva?

 

R: Não sei se existe essa dificuldade e essa dádiva ao escrever poemas. Minha maior dificuldade não é em escrever e sim em ver depois o quanto me expus, o quanto me abri para as pessoas que irão ler. Como bem disse o Carlito Azevedo, o senhor Dorido é uma espécie de alter ego do autor, no caso eu, e isso me encabula.

 

Quanto tempo levou burilando seu livro? A versão inicial é muito diferente da definitiva? Por quê?

 

R: Bem, comecei na Oficina há uns 10 anos e sempre quis publicar um livro. Não sabia se um romance, um livro sobre minhas observações de gestor em saúde ou um livro com poemas. Somente sabia que não queria publicar um livro apenas por publicar. Queria que tivesse um bom conteúdo. Há mais ou menos dois (2) anos o Carlito disse que eu podia começar a pensar em reunir alguns poemas para publicar. E aí tudo começou. Se a versão inicial é muito diferente da definitiva? Acho que um pouco, sim. Nesses últimos dois anos me senti mais maduro na escrita e em como colocar minhas verdades e vivências em forma de Poesia. Acho que deu certo. Assim espero.

 

Você trabalhou muitos anos como psiquiatra em presídios e manicômios judiciários. Como foi essa experiência e como ela agrega a sua poesia?

 

R: Já a partir do terceiro ano de medicina em Campo Grande (MS), fui morar numa clínica psiquiátrica sob orientação da Dra. Marila Teodoroviks e com outros estudantes interessados em psiquiatria – Renilde e Augusto. Ali, ainda bem jovens, já vivíamos uma incrível experiência com os doridos pacientes psiquiátricos. Em 1976, fui ser médico psiquiátrico na Aeronáutica, atendendo as 3 Forças Armadas em Mato Grosso. Além da psiquiatria, fazia os atendimentos aos índios cinta-larga em Aripuanã, na Amazônia, em missões militares. Quando cheguei ao Rio, fui trabalhar, tanto na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro (Ambulatório Santa Isabel), quanto no complexo penitenciário da Frei Caneca do DESIPE. Nos 11 (onze) anos em que trabalhei nesse complexo penitenciário, pude ver todo o tipo de paciente, com e sem patologias psiquiátricas, mas todos verdadeiramente doentes. Uma carga pesada no dia a dia dessa vida carcerária, sem condições humanas, higiênicas e salubres possíveis. Uma vida paralela de sofrimento. Um descaso de nossos governantes. Esse sistema sempre adoeceu quem lá estava, internos (presos) e trabalhadores. Um verdadeiro horror e um laboratório de vida sub-humana que não desejamos nem para nossos piores inimigos. Quando faço poemas citando esses personagens tão sofridos, tento mostrar um pouco do que é uma vida ceifada por um fato que não se espera durante nossa estada aqui na Terra.

 

Você se diz artesão nas horas vagas. O que costuma fazer? Como isso te ajuda?

 

R: O artesanato sempre me ajudou a contrapor as dificuldades que minha vida profissional me impunha. Como também amenizou sempre os momentos difíceis que enfrentamos. É uma maneira de colocar beleza em nossa vida familiar e nas dos outros. Sempre gostei de desenho e pintura. Gosto de tinta a óleo, guache, grafite e aquarela. Já fiz Design de Jóias e a partir daí fizemos em família bijuterias, como também ultimamente tenho feito bordados para minhas filhas e meus netos. Gosto de pegar seus desenhos e transformá-los em quadros ou almofadas. O artesanato alivia nossas dores.

 

Você diz que senhor Dorido pode ser seu único livro, não sabe se produzirá outro. Por quê?

 

R: Bem, quando digo isso é porque fico constrangido em querer mais algo que possa me colocar em evidência. Sei que tenho material suficiente para outro livro, mas na verdade não sei. Fui convidado para participar de um projeto sobre um livro baseado em narrativa e humanidades na saúde. Vamos dar tempo ao tempo. Aprendi com um neurocirurgião que me dizia quando atendeu uma de minhas filhas: – Boigues, vamos viver um dia de cada vez. E isso levo para minha vida toda.

 

– Valéria Martins

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