A mão firme do escritor Guille Thomazi

Em um país estrangeiro, no início do século XX, uma mulher refugiada numa cabana no meio da pradaria, cercada de lobos, dá à luz duas crianças. Uma nasce morta, a outra sobrevive, porém, acometida de nanismo primordial – anomalia genética rara, na qual os seres humanos alcançam o tamanho e as proporções de uma boneca. A sequência impactante é o ponto de partida do novo e aguardado romance do escritor catarinense Guille Thomazi, autor de “Gado Novo” (Ed. 7 Letras, 2013), que teve os direitos vendidos para o cinema e em breve chegará às telas dirigido por Beto Brant (“O invasor”, “Os matadores”, “Cão sem dono”), com o ator Daniel de Oliveira no elenco.

 

Segure minha mão” se passa em um país frio, um século atrás, durante uma guerra, bem distante do universo contemporâneo rural brasileiro de seu primeiro livro, “Gado novo”. De onde veio essa história?

 

Resposta: A partir de muitas e muitas leituras. Foram anos de trabalho duro e criação rigorosa. Muito estudo para apreender e depurar o espírito que eu queria criar, a ambientação e a vida interna da história. Lendo autores essenciais, de Pushkin a Svetlana Aleksiévitch. De história a filosofia. Pesquisei muito. Busquei me familiarizar com a ambientação visual dos lugares que não conheço e criei a história calçada em minhas especulações. Não há qualquer tentativa de recriação histórica. Inventei uma guerra como pano de fundo, baseada na guerra russo-polonesa dos anos vinte do século passado. Minha intenção foi compor um livro que pudesse ter sido escrito por um contemporâneo de seus personagens.

 

A capa do livro é uma foto originalmente em preto e branco, colorida pela especialista Marina Amaral, brasileira reconhecida internacionalmente por seu trabalho como colorista de fotos históricas. Qual é a história dessa capa?

 

Resposta: Depois de pesquisas em acervos históricos encontrei esta fotografia de oitenta anos atrás. Assim como em Gado Novo, a capa foi uma escolha minha, e assumi a negociação diretamente com a agência inglesa que detém os direitos sobre a imagem (Toda a produção do livro é bancada pela editora). A fotografia foi trabalhada pela colorista Marina Amaral, mineira radicada em Londres, especializada em colorização de fotografias históricas (vale muito a pena dar um Google). Ela é renomada no exterior, mas por enquanto quase desconhecida no Brasil. Realizou um extraordinário trabalho para o museu de Auschwitz, colorindo imagens de prisioneiros (resgatadas de arquivos que as próprias vítimas conseguiram esconder ao fim da guerra quando nazistas tentavam apagar as provas de seus crimes). No mês passado Marina Amaral concedeu uma entrevista para a revista Veja, na qual revela ser autista. Agora, em Segure Minha Mão, pela primeira vez outra pessoa utiliza trabalho seu para a capa de um livro.

 

Os personagens de “Segure minha mão” tem ou adquirem deficiências físicas (evitaremos spoiler), começando pelo protagonista. Por que?

 

Resposta: Imagine ser estrangeiro, estar no meio de um país em guerra, se metendo no meio das mais cruentas batalhas perguntando por uma mulher desaparecida. Acrescente a gagueira, com as palavras competindo com o ruído de bomba e tiro. E de vez em quando ocorre um ataque epilético. Uso sempre símbolos e metáforas nas minha histórias. Todos somos deficientes. Em menor ou maior grau, seja fisicamente, cognitivamente ou moralmente. Quando opto por referenciar deficiências físicas de alguns personagens, que são visíveis, que ajudam a rotulá-los, saliento ainda mais as provações, que já seriam gigantescas caso não possuíssem estas deficiências, e assim as torno, quase insuperáveis. A vida humana é de grande sofrimento, seja físico ou psicológico. Todos sofrem muito. Os meus personagens que apresentam deficiências não reclamam, nem se deixam vencer pelas perdas e dificuldades, pois encontram na certeza de suas crenças e dos valores morais sua fortaleza. E isto me interessa muito, pois tenho empatia pelo sofrimento adicional que a deficiência traz as pessoas, mas não pena, e sinto enorme admiração por elas, que resistem, lutam e enfrentam dificuldades maiores do que as nossas. Eu crio personagens que gosto, e eles são maiores e melhores do que eu.

 

A epígrafe de seu livro é um trecho de “A estrada”, de Cormac McCarthy. “Segure minha mão” se inspira neste livro ou neste escritor? Quais outros escritores o influenciaram ao longo de sua carreira?

 

Resposta: Ao fim do livro também há uma frase de Isaac Bashevis-Singer. O autor polonês que escrevia em iídiche, a língua mãe de Olek. Sim de fato, há uma emulação estética do livro Meridiano de Sangue, de Cormac McCarthy, com ênfase no ritmo e estrutura narrativa de Segure Minha Mão. Mas o arcabouço simbólico e referencial é bem mais amplo. A bíblia foi muito importante para este livro, também. Há diversas passagens Em Segure Minha Mão que trazem elementos e homenageiam outras obras e autores que foram importantes a minha formação. Muitos livros antibelicistas de autores que sofreram as experiências que coloco ali no meu livro, me tocaram profundamente. Há pequenas passagens de Olek por cenários de batalha, em que ocorrem gestos de grande humanidade, que foram lindamente demonstrados por estes autores, e que incorporo na trama.

 

Você é formado em Cinema e trabalhou junto com Marçal Aquino e Beto Brant na versão de seu livro “Gado Novo” para o cinema. Como foi essa experiência?

 

Resposta: Eu nunca exerci a profissão. Nunca fui um realizador. Na faculdade eu estudei o trabalho destes caras, que estavam realizando o mais vibrante e criativo cinema nacional. Haviam acabado de lançar O Invasor quando comecei minha graduação. Anos depois de lançado Gado Novo chegou ao Beto, que gostou e me procurou. Trabalhar com eles foi algo extraordinário, de grande aprendizado técnico. Aprendi que a estética deles é muito realista, enquanto trago muita alegoria e simbolismo pra história. Eu escrevo e escrevo e eles cortam. Lapidando até encontrar o diamante na pedra bruta. Fui pago para fazer algo pelo que daria um rim. Um grande privilégio.

 

O ator Daniel de Oliveira se apaixonou por “Gado Novo” e interpretará o vilão da história, além de compor uma música para o filme. Como tudo isso aconteceu?

 

Resposta: Foi tudo uma surpresa. Beto e eu estávamos no Mato Grosso do Sul, estudando a ambientação do roteiro quando ele disse que o protagonista tinha de ser Júlio Andrade. Mandou o livro pra ele, que leu e topou na hora. Cerca de um ano depois, Daniel, que é amigo de Julinho tomou conhecimento também, e pediu a Beto para participar. Tínhamos em mente outro personagem pra ele, mas Daniel pediu para ser o antagonista. E é claro que levou. Daniel me disse que o único canal direto com o público que utiliza é o instagram. Logo veremos lá a indicação do clipe que está editando, com a música tema que ele compôs e imagens captadas por Beto, nas locações do filme.

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