A delicadeza que ainda existe

Prosa e poesia se misturam para narrar a perda, a solidão, mas também as memórias que permanecem no livro de contos O que não existe mais (ed. Alaúde), obra de estreia do escritor Krishna Monteiro. Também diplomata, atual vice-cônsul do Brasil em Londres, Monteiro se vale do recorrente contato com o outro para refletir sobre si mesmo – e assim resgatar velhas lembranças. “Minha trajetória passou por uma certa entrega ao mundo – viver, viajar, sofrer perdas e grandes alegrias – em busca do que dizer”, revela. Nesta conversa ele fala de seus personagens, do surgimento de sua voz literária – regada a força e delicadeza –, da vida de diplomata e de escritor, além da origem de seu nome – uma homenagem dos pais a Hermann Hesse.

 

Seu primeiro livro nasce com voz literária bem definida, forte e delicada ao mesmo tempo. Como foi a trajetória de descoberta e afirmação desta voz?

Creio que a construção de uma voz literária é resultado da resposta a duas questões: “O que dizer?”; “Como dizer?”. A primeira depende do conhecimento de si mesmo; da formação de uma visão de mundo. A segunda, de leitura, da busca por modelos.

Minha trajetória, assim, passou por uma certa entrega ao mundo – viver, viajar, sofrer perdas e grandes alegrias – em busca de temas: do que dizer. E também pela leitura de autores com os quais me identifico, estudando suas técnicas: como dizer. Claro que o processo foi longo, ainda está em curso e nunca terminará.

 

Uma das principais características de O que não existe mais são os diferentes pontos de vista das personagens, bastante inusitados e originais. Como foi o processo de construção desses contos? 

Li em um livro de criação literária (Os segredos da ficção, de Raimundo Carrero) que o núcleo de toda história é a personagem. E concordo plenamente. Cada um dos contos de meu livro surgiu a partir da ideia de uma personagem numa situação-limite. Por exemplo: um galo de briga no meio de uma arena, recordando seu passado, não desejando a luta, mas sendo forçado a ela. Com base nesse ponto de partida, dedico bastante tempo à reflexão sobre as angústias e motivações do “ator central”. Passado um tempo de maturação, surge a vontade de escrever. E tudo mais (ponto de vista, diálogo, cenário, estilo) ganha forma de maneira um pouco inconsciente, servindo para reforçar as motivações da personagem.

Também acredito que, de certa forma, toda personagem cativante e convincente é em grande parte projeção do próprio autor e sua história de vida (traumas, alegrias).

 

Escritores consagrados da literatura brasileira foram diplomatas: João Cabral de Melo Neto, Vinicius de Moraes, João Guimarães Rosa. Temos a impressão de que essa profissão provê elementos fundamentais aos escritores: viagens por países exóticos e tempo livre para escrever. Qual é a realidade disso hoje?

Ao contrário do que se imagina, a diplomacia é uma profissão bastante demandante, especialmente nos dias de hoje. O tempo livre que proporciona à escrita não é diferente daquele de outras carreiras, como a medicina e o jornalismo, também férteis em escritores.

Mas talvez a diplomacia seja diferente pelo fato de proporcionar a experiência do distanciamento, da alteridade.  Tenho muitos amigos e colegas com origem similar à minha – brasileiros de classe média, criados no interior – que atualmente, em função da carreira diplomática, vivem em lugares como Coréia do Norte, Paquistão, Londres. Como não poderia deixar de ser, essa experiência de exílio (positivo, mas exílio) proporciona o retorno a lembranças antigas. Lembro-me de uma frase de Lévi-Strauss – um grande viajante – que traduz muito bem esse sentimento: “Por um paradoxo singular, minha vida aventureira mais me devolvia o antigo universo do que me abria um novo, ao passo que este que eu pretendia dissolvia-me entre meus dedos”.

Esse “antigo universo” é grande matéria-prima para a literatura.  Talvez, por isso, Guimarães Rosa, ao escrever na sofisticada Hamburgo, escolheu como tema o sertão. E João Cabral de Melo Neto, ao descrever a Andaluzia em seus poemas, comparou-a à caatinga.

 

Você foi editor de textos literários da Revista Juca – Diplomacia e Humanidades. Como foi essa experiência? Ajudou em algo o escritor?

Bastante. Ler textos produzidos por outras pessoas, conversar com pareceristas responsáveis pela avaliação das obras, sugerir modificações, tudo isso lança luz àquilo que escrevemos e nos faz aprender.

 

Qual é a origem do seu nome? Por que Krishna?  

Sou um filho tardio da década de sessenta. Nasci em 1973. Meus pais, naquela época, liam muitas obras ligadas à contracultura, especialmente Hermann Hesse, interessavam-se por mitologia grega, hinduísmo, relatos de viagens.  Eu e meu irmão – chamado Sidharta, em homenagem a um livro de Hesse – crescemos nesse ambiente. O que acho mais incrível é que, por esses paradoxos tão brasileiros, fomos batizados na Igreja Católica, talvez por pressão de nossos avós…

 

Está escrevendo um novo livro? Pode adiantar algo?

Sim. Estou trabalhando atualmente num romance, explorando muitos dos temas presentes em O que não existe mais: memória, perda, a presença constante do passado, a tentativa de dissolução de fronteiras entre poesia e prosa.

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