“Raquel escreve, com uma verdade extrema e inesperada, no limite entre o dizível e o indizível, trazendo à vida pessoas comuns que se tornam incomuns e singulares pela força de sua escrita”, diz Noemi Jaffe, Doutora em literatura brasileira pela USP, escritora, professora e crítica literária brasileira, sobre “Trinta e três de agosto” (Ed. Perspectiva), livro de contos da escritora portuguesa Raquel Laranjeira Pais. Leiam a entrevista com a autora.
“Trinta e três de agosto” conta as histórias de pessoas comuns e recortes de suas vidas nada comuns. A leitura leva a crer que Raquel Laranjeira Pais é uma arguta observadora do cotidiano. Como costuma eleger os temas de seus contos?
R: Os contos, a escrita, não surgem sempre da mesma maneira. Alguns contos surgem da observação mesmo, coisas que eu vejo, detalhes, gestos, imagens que ficam na memória e pedem uma história. Mas nem sempre é assim, há contos que nascem da urgência de falar de algo, é o caso por exemplo do Aracáuria angustifolia, um conto do livro Trinta e três de agosto, sobre os incêndios em 2017 em Portugal. Perdemos vidas, casas, o pinhal do rei, precisava escrever sobre isso. Outras vezes a escrita surge das próprias palavras, de constrangimentos, como um jogo em que é preciso falar sobre a sem falar b, c, ou d, dessa artificialidade surgem caminhos não explorados e o texto acaba indo para lugares desconhecidos para mim.
Você morou sete anos em São Paulo e regressou a Lisboa em 2017. O que de bom carrega na lembrança de nosso país? Existe algo bem brasileiro que tenha alimentado a sua literatura?
R: Sempre tive uma relação de apaixonamento com o Brasil, vejo ao escrever isto que o corrector me sugere aprisionamento. É engraçado e um pouco verdade. O tempo em São Paulo foi ao mesmo tempo maravilhoso e penoso. Os contrastes tão extremos eram desconhecidos para mim, em São Paulo a natureza e a cidade encontram-se constantemente, o doce e o salgado, a ternura e a brutalidade. Sem dúvida descobri coisas no mundo e em mim que não teria conhecido em outro lugar.
A literatura brasileira não era totalmente desconhecida para mim, já lia Clarice e Guimarães Rosa, Vinicius de Moraes entre outros, ainda assim descobri uma literatura riquíssima que reforçou o meu desejo de liberdade no texto. E sobretudo o falar um português simultaneamente familiar e ao mesmo tempo diferente criou para mim um espaço importante para as pensar.
A apresentação do livro é de Noemi Jaffe, escritora, professora e crítica literária, dona da escola de literatura Escrevedeira. Você teve aulas com Noemi. Acredita que as oficinas literárias podem realmente ajudar a lapidar um escritor?
R: Se me perguntasses isto há dois anos eu teria dito que é um espaço fundamental para sermos lidos e criticados, sair do nosso círculo de amigos e realmente encontrar um leitor que se confronta com o nosso texto. Só sabemos algo sobre a nossa escrita quando ela está assim, despida de nós. Hoje em dia percebo que as coisas começam ainda mais atrás, no ler. Se eu nunca tivesse encontrado a Noemi talvez não lesse, e entendesse e gostasse de certos livros, isso ampliou a minha visão do mundo e da vida. E desde então frequento clubes de leitura, faço cursos com outros escritores etc. Portanto podem, podem mesmo, e a Escrevedeira neste momento é um centro com uma oferta impressionante de cursos e clubes de leitura vale muito a pena conhecer.
Você é formada em Psicologia e trabalha como psicanalista em seu consultório em Lisboa. Como a psicanálise influencia a sua escrita e visão de mundo?
R: É uma pergunta difícil, não saberia dizer ao certo. Comecei a ler Freud aos quinze anos, então não sei separar muito bem o que era o antes e o depois da psicanálise. A curiosidade com as pessoas sempre esteve. A literatura é uma resposta como é a psicanálise: as duas são possibilidade de novas perguntas. Uma e outra ajudam a encontrar palavras para nos aproximarmos dos enigmas e silêncios para aceitarmos que eles precisam de existir.
No calendário da Raquel existe o dia “Trinta e três de agosto”? Que data especial celebra-se neste dia?
R: O trinta e três de agosto é uma data um pouco como o unbirthday da Alice, todos os dias podem ser um bocadinho trinta e três de agosto. Este ano foi o primeiro ano em que o livro já existia fisicamente, e no dia 31 pensei no que me perguntas, seria o 31 de agosto mais 33? Ou o 2 de setembro? Fiquei a ver o dia com mais atenção, e parece-me que ele foi mais longo que o ano passado…