Sem meias palavras e com sinceridade à flor da pele, a escritora e tradutora Cristina Parga nos leva a tomar consciência da dor e do trauma das mulheres que vivem perdas gestacionais em seu livro de poesias e prosas poéticas “Clearblue blues” (Ed. Urutau). Clearblue, para quem não sabe, é o nome de um popular teste de gravidez. Quatro vezes Cristina engravidou, mas somente uma criança nasceu: Catarina. “Ele disse ‘Catarina’, e eu gostei — um nome assim todo branco, com um toque amarelo luz”. Leiam a entrevista com a autora.
Sua poesia é narrativa e os textos curtos, poéticos, se aproximam da prosa em alguns momentos. Por que escolheu essa forma de contar sua história?
R: Não sou poeta, mas sempre fui uma grande leitora de poesia. A verdade é que, em fases mais dolorosas, me falta fôlego para narrativas – parece que as palavras vão saindo em soluços, fragmentadas. Alguns fragmentos ecoam forte em mim, e aí vou construindo, como num quebra-cabeças, imagens e sons, formulando e repensando sentidos, me deixando surpreender com o que sai. Mas sinto que não sou eu quem escolho a forma, que a história pega na minha mão e vai tomando sua forma sozinha.
O livro é muito pessoal e íntimo, e nos faz sentir bem próximos de você. Em algum momento pensou em não publicar, por excesso de pudor, por exemplo?
R: Pensei. Primeiro por medo de que não fosse bom. Tenho mais pudor de publicar algo ruim do que de me expor. Quando abriu o edital “maternidade” da Urutau, reuni e editei tudo, mandei e pensei: se for escolhido, fico tranquila, alguma qualidade deve ter. A maior parte do que escrevo é íntimo e pessoal, até minha ficção flerta com a autoficção. Talvez eu não saiba escrever de fora, sem mexer nas entranhas, sem usar o corpo, a pele. É até curioso, porque na vida “real” sou bem reservada e tímida.
Você diz, e é visível no livro, que esse período de perdas foi muito traumático e paralisante. O que te fez querer voltar a esse período, publicar e falar sobre ele, quando você já vivia uma fase mais feliz, com a vinda da sua bebê?
R: A necessidade de afirmar a existência do Miguel, do Antonio e da Cecília, que pra mim, é eterna. Como uma nota musical ecoando no infinito. E é difícil porque não há marcos, não há túmulos, nenhum testemunho além do meu e o do pai –– quem não soube, nunca ficaria sabendo, e quem soube, já esqueceu. Também sentia que precisava falar sobre o lado feio e assustador da infertilidade, de se sentir um cemitério de bebês. De como ela nos leva pra recantos escuros de nós mesmas. Se eu tivesse lido algo assim na época, talvez não me sentisse tão solitária, tão monstruosa por não saber lidar com a gravidez dos outros. Ou por questionar a minha fé. Queria que outras mães que perderam seus filhos lessem e soubessem que não estão sozinhas.
Você é profissional de textos atuante no mercado editorial brasileiro, autora de um romance, “Qualquer areia é terra firme”, e um volume de contos, “Furta-cores”, ambos pela Ed. 7Letras. É desafiador encontrar tempo e energia para criar seus próprios escritos enquanto trabalha com as obras dos outros?
R: Quando eu trabalhava na editora, brincava que passava meus dias fazendo os livros dos outros e desistindo dos meus. Mas a verdade é que foi uma fase muito criativa e produtiva, talvez por estar em contato direto com todo tipo de escrita. Traduzir e fazer copidesque também me impulsionam, ajudam demais criativamente. Difícil mesmo é ter energia pra escrever com uma criança de 2 anos em casa.
“Clearblue blues” tem final feliz graças ao nascimento de Catarina, que chegou ao mundo trazendo novos desafios. Se o final não fosse feliz, escreveria o livro assim mesmo?
R: Meu primeiro impulso é dizer que se o final não fosse feliz, eu não estaria mais aqui. Mas a vida surpreende, e talvez eu estivesse, e talvez encontrasse novos desejos, novas forças me alavancando noutra direção. Talvez, se o final fosse outro, e a vontade de escrever ainda existisse, tentaria trabalhar numa ficção sobre o tema. Ou me calaria por muitos e muitos anos.
“Só o ato de escrever já funciona como âncora. Mesmo que o que saia dos meus dedos não faça sentido, não pareça ter valor. Então, escrevo para pisar no mundo. Riscar meu ponto e dizer a que venho”. Escrever é uma necessidade para você?
R: Não é uma necessidade como me alimentar, beber água, me relacionar com alguém… enfim, mas é o que dá sentido a tudo isso. Quando não escrevo, vou me sentindo vazia, sozinha, sem luz. A vida fica meio em piloto-automático. Me sinto sem voz, meio “ninguém”. Dá pra viver sem escrever, mas é uma vida mais sem sal, sem brilho. Talvez porque eu só encontre/crie o brilho das coisas escrevendo.