Numa família pobre, de origem polonesa, no interior do Paraná, Rosália, a filha recém entrada na puberdade, acorda de repente com os estigmas da Paixão de Cristo. Uns a consideram santa; outros, uma fraude. Quinze anos depois, Rosália, casada, mãe de três filhos, vive em uma fazenda ocupada por trabalhadores rurais sem-terra. Há tensão no ar, pois a polícia pode aparecer a qualquer momento para expulsá-los. Em meio à confusão da ação policial, ocorre uma tragédia – e, outra vez, um fenômeno inexplicável é testemunhado, dessa vez pelo padre que assessora o acampamento. Quinze anos depois, um encontro fortuito faz com que todas as pontas soltas dessas três narrativas se juntem, num final impactante. “Forte como a morte” (Editora Aboio, 2023), narrado com maestria por Otto Leopoldo Winck, é como uma rosácea (vitral em forma de rosa, comum nas fachadas das catedrais góticas), cujas pétalas vão se abrindo e revelando histórias, que tem como pano de fundo o Brasil das últimas quatro décadas. Leiam a entrevista com o escritor.
“Forte com a morte” tem enredo bastante original e a forma de narrar, alternando tempos distintos em terceira pessoa, e a voz do padre em primeira pessoa, também surpreende. Como elaborou a ideia e a forma deste livro?
R: Foi aos poucos. “Forte como a morte” é meu romance de gestação mais longa e complexa. Surgiu de um conto de 12 páginas, que consistia apenas na história de Rosália menina. Depois escrevi a segunda parte e só mais tarde a terceira, a do padre Hugo. Esse formato, em linhas gerais, já estava pronto há uns 15 anos. Mas de lá pra cá ainda passou por reescritas, revisões e ajustes até atingir a forma atual. Claro que teve muitos momentos de gaveta entre uma revisão e outra.
A narrativa é entremeada por textos curtos de cunho teológico. Por que a inserção desses textos e como eles dialogam com a história?
R: Na verdade é um texto só, ensaístico, repartido em várias seções curtas e intercalado entre as três narrativas. Versa sobre uma corrente teológica – subterrânea, alternativa, subversiva – que atravessa tanto o judaísmo quanto o cristianismo, e que tematiza a ideia de um Deus que se apaga, se esvazia e por fim morre. É a teoria da “Kénosis” (esvaziamento, em grego), que, em vez da imagem de um Deus plenipotenciário, assume a imagem de um Deus fraco, que se coloca ao lado das vítimas e planeja o seu próprio desaparecimento na história. Tem muito de Hegel aí. Esse “ensaio” funciona, em termos musicais, como um contraponto em relação às três narrativas principais. Pense-se também, em termos pictóricos, na colagem: um material “estranho”, de outro gênero discursivo, é adicionado à “tela”. Ou então, em termos eisensteinianos, na montagem, na justaposição. Aliás, esse romance é todo construído com base na montagem. As narrativas são “quebradas” e de seus fragmentos é produzida, minuciosamente, uma rosácea. Novos efeitos e nuances de sentido são possíveis aí.
De uma só tacada, seu romance aborda a questão social, forte, e a religião. Chegou a considerar que existe certo preconceito, no meio literário brasileiro, para com livros que falem de religião?
R: Não. Veja os dois romances de Itamar Vieira Junior, que a seu modo abordam temas religiosos. Veja “Quarup”, de Antônio Callado, com o emblemático padre Nando. Veja Mutilo Mendes, Jorge Amado, Lúcio Cardoso, Guimarães Rosa, Antônio Carlos Cony, Moacyr Scliar, Socorro Acioli… O sagrado, em suas múltiplas percepções, é um tema que percorre a humanidade e de modo especial o Brasil, este país barroco, com seus santos populares, como Antônio Conselheiro e Padre Cícero. Em “Forte como a morte” esse tema é tratado sob vários ângulos, “polifonicamente”: as crendices populares, o fanatismo, sua instrumentalização política para fins escusos, não raro reacionários. Mas também temos o padre Hugo, adepto da Teologia de Libertação, corrente tão importante para a eclosão de movimentos sociais nos anos 1970-1980, de maneira especial o Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
Seu livro demonstra que você fez muita pesquisa. Como foi esse processo?
R: Costumo dizer que o escritor trabalha não só quando escreve mas sobretudo quando pesquisa. Como não sou descendente de poloneses e nunca vivi no campo, tive que partir em busca de subsídios: livros, conversas, visitas… Cada romance que eu escrevo deixa uma parte considerável de novos livros na estante.
Você é professor de literatura e vive em Curitiba, Paraná. Como é a cena literária na sua cidade e como se insere nela?
R: É uma cena de certa forma pujante, com uma abundância de novos poetas, contistas e romancistas (embora estes em menor número). Editoras independentes e livrarias de rua têm despontado, além de inúmeros saraus, tanto no centro quanto na periferia. Mas essa cena tem uma certa dificuldade de extrapolar os limites da província. De minha parte, além de professor de literatura, ministro oficinas de escrita criativa há quase 20 anos – que é a nossa principal contribuição, creio, para a alargar o modesto círculo dos leitores de literatura.
Seu livro tem um sotaque paranaense bastante forte. Sendo o Brasil um país continental, acha que essa característica poderia limitar seu alcance?
R: Não, o Brasil é um país de muitas vozes e todas essas vozes precisam ressoar, não só as do Rio e de São Paulo.
Quais são os desafios para um escritor brasileiro que escreve ficção, e como faz para tentar superá-los?
R: O principal desafio é escrever. Depois, publicar. E depois ainda ser lido. O que é realmente um desafio num país de desleitores e com uma série de problemas históricos na educação. As pessoas têm fome de pão e de poesia. Mas sem pão, não há como comer poesia. Eu tento fazer a minha parte, que é sobretudo escrever, as outras fogem ao meu controle – embora, como todo escritor e escritora, eu queira ser lido. E como brasileiro, quero um país justo.
Quais são seus planos, como escritor, daqui para frente?
R: Tenho um livro de poemas e uma novela prontos. Mas não quero publicá-los agora, senão um livro briga com o outro. O ideal, penso eu, é lançar um livro a cada dois ou três anos. Além disso, quero iniciar outro romance, tarefa para os próximos três ou cinco anos. Escrevo muito devagar.