Verdades para desconfiar

Uma vidente alerta seus vizinhos de que a cidade arderá em chamas; um velho de passado impreciso disserta sobre o asilo concedido a um líder religioso caribenho durante a ditadura; um morador de rua transforma em abrigo a carcaça de uma baleia azul; um renomado médico tenta desmentir o aviso de que uma pedra cairá sobre seu futuro hospital. Os contos de “Onde as verdades nascem” (Ed. Patuá), livro de estreia de Júlio César Bernardes, se passam em localidades rurais e contém elementos fantásticos que nos levam a refletir, nas entrelinhas, sobre questões atuais do nosso imenso Brasil. Leiam a entrevista com o escritor.

 

Os temas dos contos de “Onde as verdades nascem” são bem originais e inusitados. De onde vieram essas ideias?

 

R: Eu gosto de colecionar absurdos. Eles podem surgir de ideias minhas, mas também de conversas que escuto no metrô, em mesas de bares, em manchetes de jornais. E quando encontro um, busco testar reações de personagens, experimentar que mudanças esse absurdo pode produzir em pessoas, famílias, bairros, cidades. Se um absurdo provoca uma reação coletiva coesa, provavelmente há um conto ali, atrás dele.

 

Em comum a todos os contos, é o fato de terem como cenário localidades rurais brasileiras, embora sem nome definido. Essa foi uma escolha consciente do escritor antes de escrever o livro ou os textos foram saindo desse jeito?

 

R: Foi uma escolha consciente. Por uma série de motivos, mas o principal talvez seja tentar entender se hoje em dia ainda conseguimos falar de um país inteiro na literatura, apostando que sim. Se tramas, medos e esperanças irrompidos em lugares longínquos forem tangíveis para leitoras e leitores com diferentes trajetórias, então existe abertura para um debate coletivo, não localizado, sobre caminhos possíveis para nós.

 

Você fez um post em seu Instagram – @jcbesantos – contando como sua mãe e sua avó foram importantes na sua formação como escritor. Na sua visão, o que é necessário para formar bons leitores e, num segundo momento, bons escritores?

 

R: Um bom leitor precisa desconfiar do texto, tentar sabotá-lo. Se o texto vencer nossas barreiras, então fará o que quiser com a gente, o que é delicioso. Se nossas defesas continuam de pé, estamos, por outro lado, mais próximos de um bom escritor: alguém que, conhecendo defesas, sabe derrubá-las. Minha vó não escreve, mas me ensinou boas técnicas: espreitar, esperar, espalhar armadilhas aqui e ali, levantar cercos para esconder invasões.

 

É impressão ou alguns dos contos são inspirados em passagens bíblicas: a praga de gafanhotos e o homem que mora dentro da baleia?

 

R: Muitos dos meus contos apresentam releituras ou alusões a passagens mitológicas, o que inclui, mas não só, a mitologia cristã, em especial o antigo testamento. Uma coisa que admiro e que me diverte é o desafio de contar mais de uma história ao mesmo tempo, e elementos mitológicos ou folclóricos são ricos nesse sentido porque guardam uma carga afetiva bem compartilhada, que podemos moldar à sombra de um fio narrativo principal.

 

Foi sua intenção, ao escrever o livro, usar as histórias e a fantasia para nos fazer enxergar, de outros pontos de vista, as mazelas e entraves brasileiros?

 

R: Havia uma intenção inicial de abordar problemas brasileiros, mas não central, e que no entanto alcançou mais espaço nos contos, expondo uma urgência que não pude negar. A ruptura das nossas instituições seria um bom exemplo. Sobre a função do elemento fantástico dentro dessa proposta, gosto de desenhar cabos de guerra entre o insólito real e o insólito realmente imaginado. É assustador como o real costuma vencer essa briga pelo disparate.

 

Quais são seus planos como escritor? Onde gostaria de chegar?

 

R: Em termos práticos, tenho mais um volume de contos que gostaria de publicar em breve, e também um livro de poemas. No longo prazo, há ambições de qualquer escritor, como ser traduzido. Mas o que realmente me encanta é a possibilidade de que esses contos fiquem gravados por anos no imaginário de quem os ler. Se isso acontecer, estarei onde quero.

 

Por fim: onde as verdades nascem?

 

R: Uma verdade pode ser descoberta, encontrada, aceita. A partir do momento em que elas começam a nascer, onde quer que seja, as coisas podem não estar indo bem. Se elas nascem em qualquer lugar, aí a situação já é crítica, e é, acredito, algo próximo do que vivemos hoje. Quero que as pessoas cheguem a esse título duvidando do “onde” e saiam duvidando do “nascem”.

Este site utiliza cookies para lhe oferecer uma melhor experiência de navegação. Ao navegar neste site, você concorda com o uso de cookies.