Shakespeare já discutia gênero há mais de 400 anos

Muitos acreditam que a obra de William Shakespeare (1564-1616) se assemelha a um oráculo que abarca os dramas de toda humanidade. O livro “Identidades masculinas em Coriolano e Antônio & Cleópatra” – versão revista e atualizada da pesquisa desenvolvida por William Soares dos Santos em sua dissertação de mestrado no Programa Interdisciplinar de Pós-graduação em Linguística Aplicada da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – utiliza duas peças “romanas” de Shakespeare – Coriolano e Antônio & Cleópatra – para ilustrar e discutir o universo masculino na tradição do ocidente. Leiam a entrevista com o autor.

 

Em que momento teve o insight de estudar a construção do masculino nessas duas peças de Shakespeare – considerando que seu livro é uma versão revista da dissertação de mestrado defendida em 2002, portanto, bem distante das discussões de gênero da época atual.

 

R: Falar sobre Shakespeare e, sobretudo dentro da academia, não é algo muito simples porque temos de lidar com uma longa tradição de estudos shakespearianos. Além disso, estamos em um país periférico, o que só complica as coisas. Então, antes de qualquer coisa, é importante que eu diga que eu só pude estudar, escrever e continuar a aprendendo com a sua obra até hoje porque a vida me deu a benção de ser aluno direto da Professora Marlene S. dos Santos, uma das principais estudiosas da obra de Shakespeare no Brasil. Foi com ela que tracei um importante percurso de formação que dura até hoje. Foi com ela que, no final do século passado, empreendi estudos sobre algumas personagens femininas centrais da tragédia shakespeariana, como Desdêmona e Emília de Otelo. Esses estudos, por sua vez, levaram-me a pesquisar a questão do masculino em que eu pude realizar algumas relações entre as masculinidades que são retratadas nas peças Coriolano e Antônio & Cleópatra com algumas daquelas que ainda nos dizem respeito em nossos dias.

 

Em seu texto, você mostra como a mãe de Coriolano, na ausência do marido, educa o filho de acordo com parâmetros rígidos que definiam a masculinidade no Império Romano – e cujos ecos perduram até hoje. Acredita que os meninos nascidos hoje estão livres dessa marca?

 

R: A ideologia do patriarcado é muito perversa, de tal modo que uma das suas formas de dominação é fazer com que as mulheres ajam em seu favor. É desta maneira que a mãe de Coriolano acaba por transformar o seu filho em um homem que age de acordo com um modelo de gênero que poderíamos identificar hoje com os modos fascistas de se exercer ou performar a masculinidade. Desse modo, dependendo de seu contexto de formação, os meninos não conseguem escapar da sina de serem formados segundo modelos patriarcais rígidos de masculinidade. O resultado disso é o que vemos todos os dias nos noticiários de nosso país: homens matam mulheres, simplesmente, porque ainda as veem como um objeto a ser possuído. A ideia de que “se ela não quer ser minha, não vai ser de mais ninguém” é a justificativa de grande parte dos homens que cometem feminicídio. Homens matam mulheres transexuais por simples ódio da liberdade que essas mulheres alcançaram em se expressar fora dos parâmetros da ideologia do patriarcado. E o pior é que eles se acham no direito de matar.

 

Já Antônio, general poderosíssimo e sábio, talvez justamente por isso, é julgado e cobrado por seus subalternos como tendo “fraquejado” diante do amor por Cleópatra, e por sua abertura e simpatia à cultural egípcia. Antônio transfigura o momentum do homem atual diante do desafio de relacionar-se com mulheres independentes e donas de suas vidas?

 

R: Certamente uma das maiores dificuldades do homem moldado pela ideologia do patriarcado e lidar com mulheres independentes e poderosas porque uma das bases do patriarcado é a submissão da mulher pelo homem. Desse modo, mulheres como Cleópatra são uma ameaça a esse construto. No caso de Antônio, ele até deixa, inicialmente, ser levado pela felicidade de ter encontrado alguém que lhe seja afim, o que poderíamos chamar hoje de “alma gêmea”. O problema é que, como muitos homens hoje, ele é pressionado socialmente. A questão da colonização é muito forte na peça. A Roma viril que Antônio deve representar não pode se deixar levar pela liberdade proporcionada pelo amor franco e ele acaba vacilando em ser livre ao Lado de Cleópatra e renegá-la. Em seu percurso de dúvidas haverá momentos em que ele terá raiva dela, tratando o amor de sua vida (uma das coisas mais difíceis que alguém possa ter na existência) como uma simples prostituta. Na experiência de Antônio, temos uma triste lição: é muito difícil para o homem preso a um modelo hegemônico de masculinidade se libertar de suas amarras. Se ele continua nesse caminho, a perda do amor e a tragédia são quase que inevitáveis. Mas quando consegue se libertar, ele pode perceber que estava em uma armadilha, já que a possibilidade de poder se expressar com liberdade, poder chorar, poder dizer que não carregará sozinho todas as responsabilidades imputadas ao macho alfa provedor também é um salto para a liberdade.

 

Além de publicar “Identidades masculinas em Coriolano e Antônio & Cleópatra” (Ed. Amavisse, 2020), você participa do livro “O que você precisa saber sobre Shakespeare antes que o mundo acabe” (Ed. Nova Fronteira, 2021). Como e por que a obra de um artista nascido no século dezesseis ainda desperta tanto interesse entre todos os povos e culturas?

 

R: Shakespeare, ao contrário do que possa parecer, não é um gênio isolado, mas um dos principais frutos de complexas e diversas transformações sociais pelas quais passava a Inglaterra de seu tempo. Eu precisaria escrever um livro para dar conta, minimamente, da questão. Não terei tempo de explorar muitos detalhes aqui, mas posso dizer que na Inglaterra elisabetana o Renascimento encontra no teatro o seu principal meio de manifestação, o que possibilita a Shakespeare (e, não nos esqueçamos, também a alguns de seus contemporâneos) explorar a existência humana e suas complexidades como poucas vezes antes na história da humanidade. Não foi por acaso que Herald Bloom intitulou um de seus principais livros sobre Shakespeare de Shakespeare a invenção do humano. Esse título mostra que Shakespeare representa um ponto de inflexão central no pensamento ocidental porque ele capta a tradição, fala de seu presente e, também de possíveis futuros. Com isso, ele pôde prever temas com os quais ainda nos debatemos. Veja-se, apenas como exemplo, a força dos jovens e do amor em Romeu & Julieta, a potência do sexo e da natureza em Sonho de uma noite de verão, o humor em As alegres comadres de Windsor, a destruição causada pelo ciúme em Otelo e em Conto de Inverno, a difícil relação entre pais e filhos em Rei Lear, as tensões e a transitoriedade do poder em Henrique IV, as consequências do racismo em Otelo e em O mercador de Veneza, os desdobramentos da violência em Tito Andrônico, o destino dos governos de natureza fascista em Ricardo III e em Macbeth, as profundas reflexões sobre a condição humana em Ricardo II e em Hamlet, etc. São muitos os temas encontrados em suas peças e poemas. Pelo fato de a sua obra dizer tanto à nossa condição de seres humanos, continuamos a ler e encenar Shakespeare até hoje. Além disso, temos de levar em conta que o teatro de Shakespeare também é revestido de um ideal educativo. Aprendemos a nos reconhecermos em nossa humanidade com seus personagens e tramas.

O seu livro, Identidades masculinas em Coriolano e Antônio & Cleópatra, fala também da importância da Leitura como um processo dinâmico de construção da realidade. Poderia falar um pouco sobre isso?

R: Essa percepção de leitura compreende que os textos clássicos não estão parados no tempo, mas que podem e devem ser lidos com as lentes de nossas próprias vidas. Desde o século XX, por exemplo, o texto de Shakespeare tem sido lido sob lentes que possam ajudar a entender as questões de nossas existências. Caso notório é o ensaio “Caliban” de  Roberto Retamar (1930-2019), em que este estudioso cubano faz uma leitura da peça A Tempestade a partir do olhar de Caliban, o personagem que vê a sua Ilha ser colonizada por homens do continente. Talvez só um cubano pudesse fazer essa leitura, mas a verdade é que ele não diz nada que não esteja na peça de Shakespeare. Retamar somente evidencia o processo colonial a partir de sua perspectiva. Outro exemplo a problematização do tratamento dado à Kate (Catarina), em A Megera domada. Ali encontramos um marido tratando a sua mulher de um modo que poderia até ser aceitável no tempo de Shakespeare, mas hoje já lemos como um tratamento abusivo e a própria forma de encenar a peça tem de ser reinventada. Ou seja, o processo de leitura que me guia é aquele que possibilita com que Shakespeare se faça vivo com as lentes do nosso tempo e desconfio mesmo, que, como postulou Machado de Assis (1839-1908), mesmo quando não houver mais a língua inglesa, ainda haverá Shakespeare.

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