Em algum lugar do futuro, em um país parecido com o Brasil, a Política da Desconfiança foi instaurada e, com base em recursos tecnológicos altamente desenvolvidos, todos podem espionar todos. É a morte da vida privada. O jovem Lázaro não se conforma. Ele é professor de Literatura, leitor voraz de filosofia e tem certeza que, em alguma parte, existe um lugar diferente, onde há Paz e igualdade, e as pessoas podem ser felizes. Esse é o mote do romance distópico “O Lugar”, do teólogo carioca Silvio Gomes. Leiam a entrevista com o escritor.
Você é formado em Teologia, faculdade dedicada a estudar Deus, sua natureza, seus atributos e as relações d’Ele com o homem e o universo. Por que escolheu este curso?
R: Sou cristão protestante desde os 8 anos de idade. O prazer pelos estudos da Bíblia e da tradição da igreja, particularmente da igreja Metodista, sempre fizeram parte da minha vida, desde a infância. Já adulto, minha motivação inicial era seguir o ministério pastoral. Contudo, durante os estudos, notei que minha vocação era acadêmica, e não a ministerial.
Antes de escrever “O lugar” você dedicou alguns anos para ler clássicos como “Utopia”, de Thomas More, “Horizonte perdido”, de James Hilton, além da obra completa de Hannah Arendt. Como essas leituras o influenciaram?
R: Conheci Hannah Arendt na faculdade e a leitura de suas obras me veio tanto pelo interesse de compreender sua forma de ver o mundo, como também pelo prazer do que encontrava em seus textos. Já Thomas More e James Hilton foram leituras que surgiram a partir de um desejo de compreender como era a esperança que eles tinham dentro de si. Hannah não era tão esperançosa. Era mais pé no chão. More e Hilton tentaram encantar o mundo imaginando uma forma melhor de vivermos. “O Lugar” congrega as visões dos três. Fala da capacidade de reencanto sem perder o pé no chão. Sem esquecer que as dificuldades existem e que o mundo é muito complexo. Não se pode mudá-lo, se possível fosse, fingindo que a “banalildade do mal” e o uso da violência como meio político são distantes de nós.
“O lugar” é um romance-ensaio em que, ao longo da história, vão sendo colocados questionamentos e reflexões filosóficas. Como chegou a esse estilo? É algo estudado ou não foi intencional?
R: Ele está presente desde “Penélope”, meu primeiro livro. O estilo foi consciente. Acredito que indagações e reflexões são bem aceitas quando possuem um pano de fundo consistente. Essa prática está presente nas parábolas antigas, nos mitos e em tantas outras narrativas na história. Compreender a profundidade do pensamento filosófico – inerente ao ser humano – torna-se mais fácil se houver drama, ou uma situação vivenciada por alguém. A ficção permite isso. Antes de escrever “Penélope” costumava dizer: “quero criar algo que gere entretenimento e reflexão”. O próprio Thomas More, que eu ainda não havia lido antes de escrever “Penélope”, escreveu “Utopia” dessa forma.
Qual era o seu propósito ao começar a escrever “O lugar” – se é que existia propósito. Caso sim, ele foi ou está se cumprindo?
R: Iniciei o livro em 2017 e terminei em 2018. O clima político brasileiro estava bastante tenso por conta do aumento da violência e das crises política e econômica. Alguns amigos, por diversos motivos, começaram a sair do país em busca de um lugar melhor, menos violento e mais justo. Outros se animaram a ir a protestos para “lutar e resistir”, como diziam. Havia ainda os que viviam alheios a tudo o que ocorria e os capazes de enxergar o aspecto positivo da crise, entendendo que era necessária para o país melhorar. Eu fui percebendo, nisso tudo, motivações ideológicas tanto partidárias quanto religiosas, enquanto o clima ia se acirrando. Então imaginei como seria se continuássemos alimentando os extremismos que nasciam da crise: uma sociedade acuada pela violência, partidos políticos se digladiando, buscando hegemonia, e heróis perfeitos surgindo do nada com a promessa de mudar o país. O obscurantismo ganhando espaço nas redes sociais. Já vivemos isso, na prática. “O Lugar” é também um alerta vindo de um futuro onde a intolerância aumenta graças às possibilidades da tecnologia. O triunfo de um extremismo alicerçado na política de um governo, mas também de uma sociedade que dá alicerces a esse governo.
Você é autor também “A deusa e o culpado” (Multifoco) e “Penélope” (Giostri). De que tratam esses livros?
R: “Penélope” conta a história de Heitor, um jovem abandonado pela mãe, que fugiu levando a irmã mais nova dele. Cresce afastado do pai que, durante anos, se empenhou em localizar a esposa e a filha. Antes de morrer, o pai pede ao filho que continue a busca. Sem dar muito ‘spoiler’, é um livro permeado de fantasia que trata do dilema entre ficar preso ao passado ou seguir para o futuro, ainda que incerto.
“A deusa e o culpado” explora, também por meio da fantasia, o peso na culpa em um homem. O protagonista é um homem amaldiçoado, por uma deusa, com o dom da longevidade, por conta de um erro que cometeu. Ele se identifica com o jovem narrador e tenta ajudá-lo a superar a culpa do suicídio precoce de sua noiva. Ele mesmo, durante séculos, não conseguiu superar as próprias culpas, mas deseja que o jovem siga por um caminho diferente, melhor.