Olhar o passado sem fechar as portas ao presente

A relação entre o cosmos e a interioridade humana é o tema central de “Três Sóis” (Patuá), novo livro de poesias de William Soares dos Santos, vencedor do Prêmio Pen Clube do Brasil 2018 e finalista do Prêmio Rio de Literatura 2018 com Poemas da meia-noite (e do meio-dia) (Moinhos, 2017). Dentro deste arco narrativo, o poeta divide seus versos em cinco partes, ou livros, de acordo sua unidade temática. Os títulos são: Três sóis, Eclipses, Os girassóis da juventude, O novo modus operandi do mundo, Memórias de junho e O jogo do poema. Cada livro é antecipado por uma gravura cuidadosamente escolhida, cujo significado simbólico – descrito em um glossário de figuras ao final do livro – dialoga com os poemas a seguir.

 

“Memórias de junho”, “Girassóis da juventude” são alguns títulos dos seis livros que compõem seu novo volume de poesias Três sóis. Por que essa divisão, que já apareceu em seu trabalho anterior, o livro Raro (poemas de Eros)?

 

R: Essa divisão do livro em outros livros menores é uma constante desde o meu primeiro livro de poesias, o Rarefeito, mas que se torna mais evidente neste último trabalho, o Três Sóis. O que me parece importante dizer a esse respeito é que, embora o livro seja dividido em outros livros, todo o conjunto segue uma linha constante e as divisões são guiadas por um tema principal, como em uma sinfonia de vários movimentos, sem perder a sua particularidade.

 

Três sóis é também composto de imagens, bem diferentes umas das outras, sem obedecer a um padrão. Como se deu a escolha dessas gravuras e como elas dialogam com suas poesias?

 

R: Entendo que você se refira às figuras que foram colocadas no início de cada livro. Ao contrário do que possa parecer, à primeira vista, as imagens obedecem a um padrão e foram objeto de muita pesquisa. Todas elas estão ligadas aos temas dos livros que introduzem e são explicadas em uma parte final do trabalho para que o leitor possa ter informações adequadas sobre cada uma delas. Dou um exemplo: para o livro número IV, intitulado “o novo ‘modus operandi’ do mundo”, há a imagem de uma antiga peça grega que reproduz o mito de Prometeu. Ora, sabemos que este foi punido pelos deuses por dar aos homens o fogo, que, em princípio, possibilitou o desenvolvimento da tecnologia. O livro traz poesias que abordam, justamente, a relação do homem com a tecnologia, principalmente, nos dias atuais.

 

Sua produção é intensa, com novos livros lançados em 2017, 2018 e 2019. Sendo professor e tradutor, e ainda tendo que dar conta da produção acadêmica, como encontra tempo e inspiração para criar poesias?

 

R: Sobre isso, é importante dois aspectos: o primeiro é que cada livro demora muito tempo para ser gestado. O fato de eu ter tido a oportunidade de publicar em anos consecutivos não significa que faço cada trabalho em um ano. Um ano é, na maior parte dos casos, apenas o tempo da edição do livro depois de ele estar completamente pronto. Há poesias do livro Três Sóis que estão comigo há mais de cinco anos, por exemplo. O segundo aspecto é que, com o passar do tempo, desenvolvi uma mente inquieta, que deseja refletir a respeito do mundo através de canais diferentes. A poesia é um deles. Penso que a dificuldade resida em se ser capaz de trazer propostas que sejam relevantes em cada um desses canais. Por isso, “dedicação” talvez seja uma das palavras-chave do trabalho que procuro desenvolver.

 

No Livro IV, “O novo ‘modus operandi’ do mundo”, as poesias evidenciam visão crítica e certo desalento em relação aos problemas atuais da humanidade e do planeta.  Você se preocupa com o futuro? Tem esperança?

 

R: Preocupo-me com o futuro, com o presente e, sobretudo, com o passado, principalmente quando este é apagado, substituído ou deturpado, como vem acontecendo com espantosa frequência. Mas sou um ser esperançoso porque me parece que sem a esperança a vida se torna uma empreitada impossível. O desejo de continuar escrevendo faz parte desse projeto de existência em que a esperança precisa se fazer presente. Isso não significa, no entanto, que não devamos estar atentos ao lado sombrio da humanidade e nos fortalecermos para que horrores do passado não voltem a acontecer.

 

São notáveis as referências, nas epígrafes, a poetas, filósofos e pensadores da antiguidade. Quanto de influência há, desses autores, em sua obra? Qual a origem e o motivo dessa identificação com os clássicos?

 

R: Italo Calvino, importante escritor italiano do século passado, dizia que não podemos lidar plenamente com o presente sem fazer as contas com o passado. A literatura se constitui de memórias que interligam passado e presente. A tradição literária do ocidente se dá através de um percurso que se materializa com o trabalho e a memória de escritores que refletiram sobre literatura e colaboraram em sua construção. Fugir disso seria ou ingenuidade ou arrogância e ambos os caminhos me parecem muito infelizes. A ideia é a de que não podemos enfrentar o presente sem fazer as contas com o passado. A origem dessa percepção é a minha formação, que tive oportunidade de desenvolver com os grandes professores que tive na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, a minha alma mater, e na PUC-Rio, onde desenvolvi o meu doutorado em Estudos da Linguagem. O motivo da identificação, na verdade, são muitos, mas por ora, talvez seja importante apontar para o fato de que os clássicos dizem bastante sobre a nossa vida hoje. Machado de Assis, Dante, Shakespeare e Dostoiévsky, apenas para citar alguns, continuam atuais e duvido que deixem de ser por muito tempo. Devo dizer, também, que no meu livro há referências a escritores mais recentes como o poeta malgaxe Jean-Joseph Rabearivelo (1901-1937) e a poeta argentina Alejandra Pzarnik (1936-1972), ou seja, olhar o passado não significa fechar as portas ao presente.

 

– Valéria Martins

 

 

 

 

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