Viajar e escrever

Clara é uma mulher de meia-idade que, com o pretexto de aprender Inglês, decide passar um período em Malta – o pequeno arquipélago no Mediterrâneo entre a Europa e a África. Lá, a professora universitária passa em revista feridas do passado, frustrações e desejos, num reencontro poderoso com sua própria identidade. À primeira vista, a sinopse de “Fui” (Tinta Negra) pode parecer uma versão latina de “Comer, rezar e amar”, o best-seller de Elizabeth Gilbert, mas o romance de Nilza Rezende vai além disso. Feminista sem ser militante e agridoce sem ser piegas, este livro é uma viagem caleidoscópica que permite conhecer um dos lugares mais belos e interessantes do planeta, mas também faz voos sorrateiros sobre o Brasil atual. Impossível é não se deixar levar pela fascinante ousadia de quem descobre que sempre é tempo de viver, realizar seus sonhos e ser feliz.

 

Clara, protagonista do seu romance, tem muito a ver com você, que tem idade semelhante e também foi estudar inglês em Malta. Seu livro é uma autoficção?

 

R: É verdade que o ponto de partida foi a viagem a Malta… mas isso responde apenas por 50% do livro… A outra parte é ficção, embora eu não garanta que seja “pura ficção”… Escrevi “Fui” como escrevi meus outros livros: a referência é o que eu vivi, o que vi e o que fantasiei viver e ver… Me lembro da epígrafe de “Um deus dentro dele, um diabo dentro de mim”, meu primeiro romance, publicado pela Record em 2003: “Tudo isso aconteceu comigo e nada disso aconteceu comigo…” Mais do que a história a contar, se “aconteceu ou não aconteceu comigo”, o que me importa é a forma de contar… Em “Fui”, busquei uma narrativa rápida, feita de capítulos curtos, em que se misturam viagem e ficção, passado e presente, humor e drama. Uma narrativa que traduzisse o olhar afiado de uma turista num mundo estranho. Clara, a protagonista, olha pra fora e olha pra dentro, em duas viagens, que, eu acho, muito interessantes.

 

Seu romance aborda temas como sexo, liberdade feminina, ‘síndrome do ninho vazio’ – que é o sentimento de perda de certas mães quando os filhos crescem e saem de casa. Esses assuntos surgiram espontaneamente ou foi intencional, com a finalidade de lançar luz sobre questões intrínsecas ao feminino no mundo atual?

 

R: São questões que as mulheres da chamada “meia-idade” vivem. É um tempo bom, “a metanoia”, tal como classificou Yung, o tempo em que você se volta mais para você do que para os outros. É a hora de fazer o que se quis fazer e não se fez, de viver o que ainda não se viveu, de realizar desejos, de partir para a aventura. Mas isso não exclui as crises… Alguém disse que “Fui” é um livro feminista sem ser panfletário, pode ser. Minha literatura prioriza as questões ditas femininas: meus três romances anteriores, “Um deus dentro dele, um diabo dentro de mim” (2003), “Dorme, querida, tudo vai dar certo” (2005) e “Bocas de mel e fel” (2011), os três publicados pela Record, têm como protagonista uma mulher; há ainda os livros de contos “Elas querem é falar” (2004) e “Chico, eu te amo” (2014), que também são protagonizados por mulheres. Logo, me interessa esse recorte, o que não exclui os narradores e protagonistas masculinos. Tenho um livro infanto-juvenil, “Já pensou se alguém acha e lê este diário?”, cujo narrador é um menino. Eu queria tirar a ideia de que só meninas escrevem diário… por isso era fundamental o João Gabriel, o menino protagonista. O mundo é para ser escrito.

 

“Fui” tem linguagem ágil e capítulos curtos que, algumas vezes, lembram crônicas. Como se deu o processo de escrita do livro?

 

R: Levei oito meses escrevendo o romance. Queria que, ao final, parecesse “uma conversinha” fácil de ler, um post de Facebook, uma leitura ágil, rápida. Daí ter escolhido capítulos curtos, com títulos irônicos, com final sempre surpreendente, como a estrutura do “conto perfeito”, cujo final remete obrigatoriamente ao início. É curioso isso, porque trabalhei muito muito no texto, para que ele tivesse esse ritmo, e o resultado foi exatamente o esperado: as pessoas me falam: nossa, comecei a ler e não parei, é muito gostoso… Acho bom isso: o sabor da leitura. Por que não?

 

Clara também representa um ideal de liberdade feminina. Em sua opinião, quais fatores ainda impedem ou dificultam essa liberdade no contexto brasileiro?

 

R: Por mais que a gente tenha avançado, acho que ainda há um ranço de machismo na sociedade brasileira. E não só na brasileira… É impressionante como as pessoas se assustam de uma mulher viajar sozinha… Aliás, acho que em geral se vê muito mal a solidão. Fomos criados sob o “é impossível ser feliz sozinho…”. Acho que a conquista maior é essa, é você poder sair por aí, ser feliz com alguém ou sozinha, ser respeitada, poder fazer o que desejar, comer, rezar e amar… e muito mais. Temos de ir conquistando isso, individualmente e coletivamente, Brasil e mundo.

 

Inquieta, você agora está morando em Portugal, onde cursa o doutorado em Literatura na Universidade de Évora. Sobre o que será sua tese?

 

R: Ixi, se eu falar, a minha orientadora me mata… Eles têm muito medo aqui de plágio… Mas eu não poderia vir para Portugal e não estudar o maior deles, o único Nobel da língua portuguesa. Mergulhei em Saramago, estou apaixonada por ele. Saramago era um inquieto, um desassossegado, um cara que nunca parou, é impressionante, você assiste ao filme dele com a Pilar e vê como ele, velho, doente, continuava a ir aos lugares, a viajar – como se, só a errância, tão característica dos personagens dele, fosse lhe garantir a vida. É isso: viajar é preciso… Fui!

 

– José Fontenele

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