Joca é um homem de meia idade, autor bem sucedido de teledramaturgia, em permanente crise com suas opções profissionais e existenciais, às voltas com a pressão de escrever uma telenovela, o alcoolismo e a paixão por uma jovem atriz. Essa é a trama do novo romance do escritor e dramaturgo Marcílio Moraes, “Entre as estrelas: Aquiles – A saga de um autor de telenovelas” (7Letras, 2018). A narrativa literária se desenvolve aos saltos combinando de forma harmoniosa e surpreendente narrador onisciente, fluxo de consciência e trechos do roteiro escrito pelo protagonista. “A Ilíada” de Homero e “Ulysses” de James Joyce são outras referências, sendo que a argamassa que une essas facetas é a cativante ironia do autor.
Você é escritor, mas tem muita experiência em escrever telenovelas e o seu novo livro trata sobre os bastidores da dramaturgia. Qual o limite entre a ficção e auto ficção na sua história?
R: Para estabelecer esta fronteira seria preciso refletir sobre os limites da imaginação. Mesmo na vida vivida, digamos assim, é difícil separar o real do inventado. A proposta literária de “Entre as estrelas: Aquiles” é imergir na subjetividade do personagem, que é um cara que escreve telenovelas. Eu também já escrevi muitas, embora nunca tenha sido tão bem sucedido quanto o meu personagem. Mergulhar na mente de um escritor é interessante porque é alguém que vive exatamente da imaginação. Mas o instrumento para criar um personagem que vive da imaginação é também a imaginação. No romance, eu uso a minha experiência de mais de 30 anos escrevendo novelas, minhas lembranças e histórias que vivi ou de que ouvi falar. Mas tudo isso é recriado pela imaginação, a minha e a do meu personagem. E a maior parte da narrativa é inventada. Então o livro não é uma auto ficção, muito menos uma auto biografia. É apenas ficção.
As novelas fazem parte da história brasileira. Na sua opinião, quais qualidades fazem esse gênero continuar fascinando o público?
R: Umberto Eco, aquele maravilhoso teórico da literatura, e ficcionista ele próprio, dizia que o folhetim, gênero em que se insere a telenovela, serve para consolar. Quem escreve folhetins e telenovelas, conscientemente ou não, constrói suas histórias para, em última análise, consolar o espectador (e garantir o faturamento das agências de publicidade). Então arrisco a hipótese de que, entre as muitas razões pelas quais a telenovela tornou-se hegemônica, quase absoluta, no audiovisual brasileiro, está o consolo que proporciona a um povo tão carente. As consequências culturais deste fato ainda estão por ser estudadas com a profundidade que o tema merece.
O seu livro intercala as formas de romance e roteiro televisivo. Como se deu essa escrita híbrida?
R: Como o meu personagem é um autor-roteirista e está escrevendo uma novela, e a ação do romance se desenvolve em torno desta atividade, é natural que a linguagem dos roteiros invada a escrita literária. O que quero dizer é que a linguagem do roteiro torna-se matéria prima da escrita literária. O que há de roteiro no livro não é autônomo, está subordinado ao universo literário.
Na década de 1970 você escrevia alguns romances de bang bang vendidos em banca de jornais. Como foi a experiência e como ela reverbera na sua escrita atual?
R: Antes de tudo, escrevi aqueles livrinhos para ganhar algum dinheiro. Eram tempos difíceis. Como eu tinha assistido muitos filmes de bang-bang na infância e adolescência, era fácil recriar aquele universo. E eu brincava usando grandes tramas da literatura universal para inventar as histórias, como Hamlet. Não creio que haja reverberação daqueles livrinhos na minha literatura, como não teve no teatro que eu escrevia naquela época e que era a minha atividade artística séria, digamos assim, embora mal remunerada.
No seu livro, Joca, o personagem principal e narrador, diz que os autores de telenovelas não são bem vistos no meio literário. Concorda com isso? Por quê?
R: A telenovela é um produto de massa, escrita sob encomenda, financiada pela publicidade e submetida a índices de audiência. Ou seja, tem a obrigação de agradar, de consolar, como disse acima. A literatura tem outro compromisso, no meu entender, que é expressar a experiência humana, sem preocupações de ser bem comportada, de agradar todo mundo e muito menos de consolar.
O seu livro anterior foi um romance policial, agora lança um romance que flerta com a dramaturgia. Já tem ideias para um novo projeto literário?
R: Eu não diria que o livro flerta com a dramaturgia. Ele tem como personagem um dramaturgo e explora a subjetividade dele. Neste particular, tem a ver com meu romance anterior, “O Crime da Gávea” que, embora seja um policial, trabalha essencialmente com a subjetividade do personagem, que é um editor de vídeo, ou seja, alguém que também trabalha com o audiovisual. Mas reitero que ambos são literatura, na expressão própria da palavra. Tenho sim, vários projetos literários, infelizmente, muitos mais que os anos que provavelmente me restam.
– José Fontenele