Rílare é filha de empregada doméstica que só vai saber a identidade do pai, um engenheiro alemão, já adulta. Apadrinhada pela família para a qual a mãe trabalha, tem a oportunidade de cursar uma faculdade – escolhe letras –, mas insiste em trabalhar como faxineira. Transitando entre dois mundos, duas classes sociais e, por que não, dois discursos, a personagem criada por Beatriz Castanheira em Avião de papel (ed. Apicuri) amarra diferentes pontos de vista, sociais e humanos, para contar uma história que testa a própria linguagem. Elogiada por Carola Saavedra, que assina a orelha, Beatriz fala a Oasys Cultural sobre a ‘arquitetura’ deste que é seu primeiro romance – e que terá lançamento em BH no próximo sábado, dia 13 –, sobre a necessidade que tem de escrever, formação, influências e projetos futuros.
Avião de papel tem um olhar humano, social, mas sobretudo estético pela forma como você trabalha a linguagem. Qual foi sua intenção primeira quando pensou o livro?
O mais fascinante do trabalho de escrever é que são os temas que nos procuram e nos encontram. Nesse sentido, o problema das diferenças entre mundos veio até mim. Minha intenção primeira era explorar um sentimento de indignação que toma conta da gente quando pensamos, por exemplo, na impossibilidade do filho de uma família muito simples frequentar a mesma escola de quem nasceu numa família abastada. Quando imaginei o livro, pensei em explorar as diferenças de uma narradora que é filha de empregada doméstica negra, passa boa parte da vida sem saber quem é seu pai, mas é apadrinhada pela família para quem a mãe trabalha; o que lhe permite ter uma boa base escolar e até cursar a faculdade. A partir daí, acredito que tudo foi uma questão de paciência, até que a escrita dessa narradora pudesse adquirir um estilo, uma maneira própria para as histórias que ela queria contar.
Você fez oficinas de escrita com autores de peso como Luiz Ruffato, Carola Saavedra e Cláudia Lage, e agora conclui um mestrado em literatura. Como isso contribuiu para sua autonomia literária?
As oficinas contribuíram para que eu tentasse ser bastante rigorosa com a minha escrita. Encontrei isso na leitura do meu texto feita pelos colegas e pelos escritores das oficinas ministradas na Estação das Letras. Tenho o privilégio de poder dizer que tive excelentes primeiros leitores para a minha ficção. Tive também uma grande alegria quando resolvi cursar uma especialização na PUC-Rio, e depois o mestrado. Acredito que, em geral, esse meu primeiro romance se caracteriza por uma escrita intuitiva. Por outro lado, a propósito do pensamento consciente em torno da cultura contemporânea, o tempo dirá em que medida e de que forma as reflexões crítico-teóricas com as quais estou dialogando estarão presentes na minha próxima história.
Como se deu o processo criativo deste primeiro romance – como nasceu o projeto, qual foi a matéria-prima para seus personagens, que tipo de esforço exigiu de você?
Também através do convívio nas oficinas, aprendi que cada história diz a quantidade de páginas de que necessita. Quando comecei o Avião de papel não sabia qual seria a duração do romance. Eu queria, por exemplo, que a Rílare contasse a história de Otávio, que acabara de chegar à sua cidade, no interior de Minas Gerais, depois de uma temporada trabalhando em Londres. Mas a narradora Rílare insistia em contar a própria história que, afinal, foi se entremeando a de Otávio. As questões entre esses dois personagens se fazem muito presentes ao longo do enredo. Ambos têm vidas cheias de mistérios e obstáculos. Em certo momento, junto com Clara e Sílvia, surge até um quadrado amoroso. Eu escrevi, cortei, reescrevi muito, durante quase quatro anos. Penso que meu maior esforço foi fazer com que se desenvolvessem as histórias, tanto aquelas que estavam dentro da Rílare quanto as que se passavam fora da narradora. Quando falo isto, estou querendo dizer das mudanças constantes de pontos de vista, a partir de diálogos desestruturados: essa parte do processo me deu muito trabalho.
Você é jornalista e se dedicou por mais de 15 anos à profissão. Quando percebeu que precisava escrever literatura? Ou melhor: foi mesmo uma necessidade?
Sim, foi e continua sendo uma necessidade. Sou completamente apaixonada pela escrita artística e acho que tenho esse lado criativo desde sempre. Há cerca de dez anos, vim para o Rio e percebi que a mudança podia ser um pretexto e tanto para abandonar a trajetória de jornalista e investir no meu antigo desejo.
Quais são as referências que a inspiram enquanto escritora?
O artista Amílcar de Castro é uma referência em termos de disciplina e da preocupação em deixar uma marca em seu trabalho, mesmo em se tratando da marca daquelas coisas que deram errado. Além do mais, ele foi o responsável, na década de 50, pela reforma gráfica do JB. Este era o jornal que o meu pai assinava, na minha infância e adolescência, o veículo que me fez pensar em ser jornalista. No caso literário, um dos livros que mais me impressionaram foi A menina morta, de Cornélio Pena. Outro foi Luz em agosto, de William Falkner: dois autores tão contrastantes, mas que tratam da melancolia e dos conflitos nas relações humanas. Suas obras nos deixam sempre um desconforto potente.
E seus planos agora? Podemos esperar por um novo romance?
Pretendo, sim, escrever um novo romance. Gostaria de contar as vidas de personagens que ostentam seu preconceito e seu conservadorismo como se fosse um motivo de orgulho. Minha intenção é mostrar que, nos últimos anos, a dificuldade das pessoas em compartilhar diferenças é cada vez maior. Este é o meu ponto de partida e, mais uma vez, essa vontade vem das minhas obsessões em torno de atmosferas que me interessam muito. Aonde esse percurso vai me levar? Não sei.
LANÇAMENTO DE AVIÃO DE PAPEL
13 de DEZEMBRO, SÁBADO, às 11h
LIVRARIA MINEIRIANA
Rua Paraíba, 1419, Savassi, BH
Por Carolina Drago